Dinner By Heston Blumenthal Dubai – Cozinhar a História, Servir Surpresa

Não são muitos os restaurantes que nos recebem com um elevador panorâmico onde uma cascata se derrama em câmara lenta, como se fosse um spoiler luxuriante do que nos espera mais acima. Mas aqui estamos, no coração do império de vidro e fogo chamado Atlantis The Royal, em Palm Jumeirah, Dubai. Um templo do luxo emirati que conquistou lugar entre os 10 melhores hotéis do mundo no 50 Best Hotels em 2025, e onde se esconde um dos restaurantes mais subtis e teatrais da região: o Dinner by Heston Blumenthal Dubai.

Uma embaixada do ego britânico disfarçada de templo gastronómico, onde o maestro de Bray aterrou para exibir não só a sua fama como o esplendor das suas criações.

O ritual secreto de um templo de vidro

Escondido num andar discreto — porque o luxo mais verdadeiro encontra sempre uma forma de se esconder —, atravessamos um espaço que nos remete mais a um clube secreto do que a um restaurante estrelado. Uma antecâmara escura, onde até o ar parece conter o fôlego e a pretensão, antecede a abertura da porta para uma sala ampla, de luz baixa e difusa, linhas clássicas com toques minimalistas e uma cozinha aberta que domina todo o espaço como um altar bem iluminado.

No centro da cena, como uma alegoria de Lewis Carroll concebida pelo próprio Heston em modo deus ex machina, está o abacaxi mecânico rotativo — uma assinatura cenográfica que grita subtilmente “aqui o mundo é meu”. Uma instalação tátil e hipnótica com um efeito prático, o seu movimento serve de motor ao rotisseur da cozinha, onde encontramos os abacaxis que nos serviriam no final da refeição a cozinhar lentamente. Por outro lado, podemos bem pensar que quando se tem ego e génio, até a fruta precisa de ser reinventada com motor e drama.

Instalados com vista para o show de água e fogo que ocupa a zona central do hotel e o horizonte recortado pelo skyline arrasador do Dubai, ouvimos as primeiras explicações sobre identidade, menu e conceito. O serviço é calibrado ao milímetro, uma simpatia britânica educada que em momento algum escorrega para o robótico. Afinal, estamos numa terra onde o protocolo começa a ser elevado a arte conceptual.

Escolher sem escolher: o teatro do livre-arbítrio

Na mesa, surge o primeiro golpe do chef disfarçado de gentileza: três cartões ilustrados, com ar de Alice no País das Maravilhas, que permitem aos comensais “escolher” o tipo de serviço. Quer conversa e contexto histórico sobre como Heston single-handedly salvou a gastronomia inglesa da obscuridade? Vire para “Adventurer“. Prefere silêncio contemplativo enquanto os pratos aterram como numa coreografia divina? Fique em “Maverick“.

Os cartões que nos dão a escolha sobre o tipo de serviço que pretendemos

É marketing de guerrilha vestido de cortesia — e funciona como um relógio suíço. Uma microdose de teatro que nos faz sentir simultaneamente especiais e ligeiramente manipulados (mas no bom sentido, o ilusionista chegaria mais à frente). A refeição acontece ao “nosso” ritmo, uma sensação de controlo que seria invejada por qualquer político em campanha.

pão e manteiga
Pão e Manteiga

O fruto proibido da cozinha Tudor

Começamos com o artesanal, com o básico, com o essencial: pão e manteiga. E não, não é um clichê. É um bom lembrete de que, por vezes, a excelência está onde ninguém olha. (A verdade é que raras vezes começo uma refeição com tanto silêncio interior.)

Prato Meat Fruit, assinatura de Heston Blumenthal — parfait de fígado em forma de tangerina
Meat Fruit

Depois chega ele: o Meat Fruit (c.1500), o prato que catapultou o Dinner e o próprio Heston de chef excêntrico para profeta da gastronomia e estrela televisiva em todo o mundo. Parfait de fígado de galinha moldado em tangerina perfeita, envolvido em gelatina cítrica que desafia os nossos sentidos como um truque de salão vitoriano. É aqui, neste momento de revelação gastronómica, que percebemos que estamos perante algo maior que um simples jantar. Confesso que hesitei antes da primeira colher. Tinha-o visto replicado até à exaustão — nas mesas estreladas, nos YouTubes obsessivos e nos fails televisivos. Mas nada nos prepara para o original. Blásfémia ou não, a faca rompeu este clássico das mesas da dinastia Tudor e o resultado foi bem mais feliz que o final de Henrique VII e Ana Bolena. Sou feliz com pouco!

The Truffle
The Truffle

O The Truffle, primo vegetariano e menos inspirado do Meat Fruit, com trufa e parfait de cogumelos, prova que até os génios têm dias menos inspirados. Um momento onde percebemos que a fórmula mágica do prato anterior não se replica facilmente sem recurso ao sabor irrepreensível da parfait de fígados, que não encontrou nos cogumelos o rival à altura.

Brisas do passado, sal do presente

A viagem continua com uma vieira generosa acompanhada de pepino, bergamota, borragem e ervilhas-lágrima — um prato que respira frescura estival e nos faz esquecer que estamos num deserto climatizado. É técnica pura disfarçada de simplicidade. Cocções delicadas, qualidade da matéria prima e apresentação, fizeram desta entrada mais marcante, e também a prova e a justificação dos prémios conquistados.

Vieira, pepino, bergamota, borragem e ervilhas-lágrima
Vieira, pepino, bergamota, borragem e ervilhas-lágrima

O Rice & Flesh (c.1390) é onde Heston conjuga, passado, futuro e conforto. Este risotto “medieval” com bochecha de vitela representa tudo o que Heston conseguiu fazer pela gastronomia: pegar numa receita perdida nos arquivos da British Library, decifrá-la como um manuscrito iluminado, e servi-la como se fosse uma descoberta arqueológica comestível. Se por um lado parece um risotto alla milanese, por outro “só” nos transmite sabor e conforto. E uma técnica sublime na preparação- convém dizer!

Rice & Flesh
Rice & Flesh

 

 

bacalhau fresco com ketchup de berbigão e manteiga de algas
bacalhau, ketchup de berbigão e manteiga de algas

Nos principais maritímos, exploramos o mar com um impecável bacalhau fresco com ketchup de berbigão e manteiga de algas (c.1805), e um halabote cozinhado na plancha a baixa temperatura, com chicória e um molho verde aromatizado com eucalipto e salsa. Perfume, textura e precisão. À sua maneira, evoca as matas atlânticas num dia de bruma. Ambos muito delicados e bem executados, com o bacalhau a tornar-se um tanto mais surpreendente, talvez pelas minhas raízes portuguesas.

halabote cozinhado na plancha a baixa temperatura, com chicória e um molho verde aromatizado com eucalipto e salsa.
Halabote, chicória e um molho verde aromatizado com eucalipto e salsa.
Frango, espargos e morchellas
Frango, espargos e morchellas

De bisturis e facas de chef: a anatomia do prazer

O frango com farse e morchellas (c.1661), suculento, com pele delicada e jus extraído das carcaças assadas, é luxo silencioso servido com a arrogância de quem reinventou a roda culinária. Puro classicismo reinventado, num belíssimo prato. Já o Ribeye de Wagyu com jus, tutano e ketchup de cogumelos, acompanhado das lendárias batatas triplamente fritas, é um momento carnal sem rodeios. Ponto, qualidade e obviamente o sabor que preenche todas as notas.

Ribeye de Wagyu
Ribeye de Wagyu

O acompanhamento de puré de batata trufado merece reflexão própria. É viciante ao ponto da indecência, luxuoso como seda francesa, e faz-nos questionar como será durante o Inverno com as trufas certas. A salada que acompanhou foi uma lufada de sofisticação, onde até a chicória parecia sedosa, fruto da técnica laboratorial de que Heston nunca abdica.

Não é uma salada qualquer
Não é uma salada qualquer

Doçura, drama e nitrogénio

O Spiced Tipsy Cake (c.1858) com abacaxi assado é teatral como ópera italiana — doçura comedida, textura quase alcoólica, um bolo que claramente frequentou melhores bares que a maioria dos comensais. – Sou pouco dado a doces. Mas aqui cedi, ou não tivesse o “bolo de ananás” um lugar especial na minha história familiar. E em boa hora o fiz, foi como se o bolo tivesse sido escrito com a mesma caligrafia de uma carta de amor antiga.

Sobremesa Tipsy Cake com ananás assado, servida no restaurante Michelin do Dubai
O Spiced Tipsy Cake

Para o final, o carrinho dos gelados de nitrogénio líquido (c.1901) — porque não existe experiência Heston completa sem pelo menos um momento onde a ciência forense encontra a pastelaria infantil. Todo o teatro que o Instagram exige, toda a textura que um gelado merece, e claro o serviço transformado em ilusionista. Muito bom!

Os gelados

Os gelados
Os gelados

A carta de vinhos é de alto nível, mas optámos por algo comedidamente elegante: Chablis 2022 Vaudon de Joseph Drouhin. Frescura, acidez e mineralidade no ponto, que correspondeu ao que procurávamos para a refeição.

Um altar em brasa para a fé de Heston

A cozinha é liderada por Chris Malone, australiano de fino pedigree que herdou de Tom Allen — guardião dos segredos alquímicos de Bray durante 16 anos — a responsabilidade de manter acesa a chama do evangelho segundo Heston. E consegue: nada aqui cheira a franquia, tudo respira, felizmente, personalidade própria.

Com uma estrela Michelin, 3 toques Gault & Millau e o n.º 33 no MENA 50 Best 2025, o Dinner confirma-se como destino obrigatório — uma estrela de conforto, em que tudo é executado com atenção milimétrica.

Considerações Finais

Este não é um restaurante. É um manifesto feito comida, uma masterclass disfarçada de jantar, um portal temporal onde Heston — o homem que elevou caracóis e bacon a um nível icónico no The Fat Duck, que transformou gelado de nitrogénio em sacramento gastronómico — convida-nos a comungar com os fantasmas da cozinha britânica.

Não vimos o Heston. Mas sentimos a sua aura, omnipresente a cada movimento do abacaxi mecânico, a cada colher de puré, a cada cartão que nos ilude com a promessa de escolha. É genial, é manipulador, é irresistível – enquanto é simultaneamente simples e confortável.

Saímos educados, alimentados e ligeiramente convertidos. Que é, no fundo, o que qualquer bom profeta deveria conseguir fazer durante uma refeição.

E quando finalmente descemos no mesmo elevador onde tudo começou, sentimos que o Heston não quis impressionar. Quis apenas que nos lembrássemos. Lembrar o sabor da história, do fogo, da dúvida. E regressar, um dia, com mais perguntas que respostas.

Morada — Atlantis The Royal, Crescent Road, Palm Jumeirah, Dubai
Reservas — +971 442 624 44
Horários — Segunda a Domingo, 18h00–23h00
Preços — A partir de €130 (vinhos não incluídos)
Imperdível — Meat Fruit, Pratos de Peixe, Tipsy Cake, Gelados de Nitrogénio
Chef — Chris Malone
Prémios — Uma estrela Michelin, 33.º lugar no MENA’s 50 Best 2025

Fotos: Flavors and senses
Textos: João Oliveira
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