Gucci Osteria — Florença, Outra Vez



Um regresso com perfume de estreia

Há cidades que não se visitam — regressa-se a elas. Como se estivessem inscritas em nós, à espera de serem redescobertas. Florença é isso: uma segunda pele. Um lugar onde o tempo dilui, a luz ganha densidade dourada, e a memória insiste em repetir os mesmos rituais, como algo visceral, quase sagrado.

Sbagliato e Focaccia
Sbagliato e Focaccia

Deambular pelas margens do Arno, perder-se entre ruelas de pedra alisada por séculos de vida e agitação, respirar a magia e a história que ainda pairam no ar. Mas mais do que a beleza imutável da cidade, são os gestos que repetimos — quase inconscientes — que tecem o nosso vínculo. Entre esses gestos, há um que se tornou inevitável: sentar à mesa da Gucci Osteria. Ritual que marca chegadas, celebra regressos e antecipa sempre algo memorável.

Já escrevemos sobre este espaço. Duas vezes, aliás. Mas há casas onde cada visita é uma nova descoberta, e esta é uma delas. Karime López e Takahiko Kondo tornaram este palco inteiramente seu. Um restaurante que já não vive da sombra de Bottura, mas da sua própria luz — uma cumplicidade que vai além do matrimónio que os une. Uma ebulição constante de inquietude criativa, loucura e rigor. Poesia moderna servida à mesa.

O ritual de chegada

Chegámos com atraso no voo, mas com o coração em antecipação. Passando a discreta porta que se abre à Piazza della Signoria, abraçamos o all things Gucci, entregamo-nos de forma natural a um cocktail clássico, preparado com o rigor do Giardino 25 (nenhuma visita a Florença está completa sem uma passagem por lá), enquanto a experiência se inicia com uma nova versão do “pequeno-almoço” da casa. Há um falso café (mais afinado do que nunca), cannoli com trufa branca, focaccia que se desfaz ao toque, grissinis que criam dependência e gougères al pomodoro.

Qual Alice no País das Maravilhas, onde nem tudo é o que parece — mas tudo faz sentido. Um início vestido de ironia calculada e precisão absoluta. Para brindar, um elegante Pierre Péters Cuvée de Réserve — salinidade, frescura e elegância num só gole.

Provocações em harmonia

Segue-se uma entrada exuberante como o próprio nome: ostra Rockefeller servida em tempura de elegância escultural, sobre um tártaro de cavalo e um molho de espinafres. Provocação pura, equilibrio perfeito. A rusticidade do tártaro suavizada pela cremosidade vegetal. A acompanhar, o Sanice Vernaccia di San Gimignano da Cesani refresca e estica o prato, com nervo e amargor controlado.

Ostra Rockefeller
Ostra Rockefeller

Segue-se a “Tostada in Bellavista”, onde Karime regressa às raízes mexicanas:  milho roxo, salmão e sikil pak – molho ancestral de sementes de abóbora, coentros e especiarias. O prato surge como um ritual, uma homenagem ao Día de los Muertos. As notas de fumo do salmão, a frescura dos vegetais, a untuosidade salina das ovas e a crocância da tostada, funcionam em harmonia de forma inesperada. Mas confesso: a memória ainda insiste naquela primeira tostada — a que nos fez descobrir Karime, e o México, à mesa desta mesma casa. O vinho? Um exclusivo Brocard Pierre L’Égarée, engarrafado apenas para o restaurante — acompanhou o prato com uma profundidade envolvente.

Tostada in Bellavista
Tostada in Bellavista
Yellow is Bellow
Yellow is Bellow

Chega então o momento emocional da tarde: “Yellow is Bellow”. Massa crocante, recheada com tártaro de chianina, atum e caviar. Aromatizado à mesa com perfume e acompanhado da pergunta: “O que é para ti a felicidade?”

A explicação científica chega com leveza: serotonina e dopamina, estimuladas por ingredientes, aromas e o acto de comer com as mãos. A resposta chega primeiro ao corpo — depois à razão. O pairing faz-se aqui com um cocktail de chá e citrinos, a sublinhar o lado efémero e perfumado da composição.

Com o Belondrade Quinta Apolonia a ganhar lugar na mesa, um trio de entrada com alma de final: pão quente, manteiga quase intocável e um azeite de pura elegância.

Carciofi!
Carciofi!

Depois, Carciofi! — prato dedicado à alcachofra em múltiplas texturas, temperaturas e tonalidades. A gordura do lardo e a acidez da gremolata criam riqueza, complexidade e surpresa. Vegetal, mas com autoridade.

Ato I
Ato I

Kamo – a ópera do pato

Três atos, uma só narrativa. Um tributo à cozinha japonesa e à estética ritual de Hachigou:

Ato I: peito de pato laminado fino, com yuzukosho, miso, shiso e um molho denso feito das carcaças. Um mergulho profundo no umami. Harmonizado com envolvência e e elegância toscana pelo Il Poggio Montanto Gran Selezione 2019.

Ato II
Ato II

Ato II: polpetta rica de pato, porco e fígados, com gema curada, puré de alperce e trufa branca de San Miniato. O prato mais opulento e indulgente da noite. Para contrariar a untuosidade, uma aposta ousada: cerveja artesanal Dead Elvis Brùton — amarga, terrosa, irreverente.

Ato III
Ato III

Ato III: o ramen. Noodles de sêmola num caldo de fragrância vibrante, intenso e límpido, com um toque fresco de gremolata, e uma leveza peculiar no caldo, que o torna simultaneamente comida diária de conforto e fine dining. A acompanhar, o vinho laranja Paraschos Kal Collio Goriziano Riserva 2021 — que não sendo o meu querido gravner trouxe corpo e especiarias à conversa.

Doçura com identidade

Che Fico! cumpre a promessa de qualquer sobremesa bem desenhada: leveza, acidez, frescura. Figo em compota, gelado, óleo de folha de figueira e granizado de kombucha.  A acompanhar, um elegante sake espumante Akashi-Tai Junmai Ginko — floral, e levemente frutado. Uma combinação exótica mas precisa.

Che Fico!
Che Fico!

O Montblanc em versão Olaf encerra com sorrisos na cara. Os ingredientes usuais, conjugados com gelado de baunilha, morango e molho de cassis. Tudo ali, tudo certo. 

E no copo? finalizamos com o Montelvini Luna Storta: um clássico passito, cujo estilo, os italianos descrevem como “vino da conversazione” — e quem somos nós para discordar?

Mont Blanc
Mont Blanc

Se havia vinho doce não podiam faltar os tradicionais cantucci toscanos, aqui apresentados por Karime, com diferentes combinações e sabores. A resposta de Florença ao domínio parisiense dos macarons. Maravilhosos!

O pairing, tal como o menu, não se limita. O Grand Tour é mais do que um nome — é uma filosofia. E os vinhos percorrem-na com liberdade: Itália, França, Japão, México, Espanha. Sem fronteiras, sem dogmas. Uma curadoria corajosa, rara num país produtor e conservador.

O serviço, esse, é feito de gestos que vão além do ensaio: memória, escuta, presença. Raymond, já um velho conhecido, voltou a conduzir os vinhos com sobriedade e segurança. Desta vez, descobrimos também Marcelina, cuja voz portuguesa e sorriso cúmplice nos acompanharam em cada prato — não como quem serve, mas como quem convida e desfruta do nosso prazer. Aqui não se fala para impressionar, fala-se para partilhar. Não se descreve, narra-se. E isso, num restaurante desta natureza, vale mais do que a estrela que ostentam.

Considerações Finais

Há restaurantes que crescem com o tempo. Outros, com os cozinheiros certos. A Gucci Osteria fez as duas viagens – e, com isso, deixou de ser um prolongamento de um império gastronómico para se afirmar como um destino com alma e nome próprio — irreverente, emotivo, profundamente autoral. Na gastronomia, tal como a Gucci tem sabido fazer com a moda ao longo dos anos.

Karime López e Takahiko Kondo
Karime López e Takahiko Kondo

Karime e Taka são mais do que um casal na cozinha. São autores de um universo e uma narrativa própria. Um universo de gestos e sabores, onde a técnica serve de alicerce e a emoção desenha o fim. Onde o humor se serve com precisão, e a hospitalidade tem rosto, gesto e voz.

A Gucci Osteria já não é apenas um restaurante a visitar. É uma casa que se habita, um ritual que se repete, um lugar onde se regressa para reencontrar — sempre — uma nova forma de felicidade.

Voltar a Florença sem passar por aqui seria impensável. Porque há lugares que nos recebem como se fossem nossos. E este é, definitivamente, um deles.

 

 

MORADA: Piazza Della Signoria, 10 – Florença
RESERVAS: +39 055 062 1744
ABERTO: Todos os Dias –  12h30-15h00 | 19h30-22h00
PREÇO MÉDIO: Preços a partir de 120€ (sem vinhos)
IMPERDÍVEL: Tostada, Tortellini e Molejas ou deixar-se levar pelas mãos dos chefs

Fotos: Flavors & Senses
Textos: João Oliveira
Versão Inglês
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