Gaggan – a reinvenção de um Génio

Gaggan Anand é uma daquelas figuras raras que surgem de tempos em tempos para desafiar convenções e redefinir o que entendemos como gastronomia. A primeira vez que o encontrei, em 2014, fui surpreendido por uma explosão de criatividade que combinava a precisão da cozinha molecular com os sabores intensos da Índia. Dez anos depois, em 2024, esta experiência foi completamente transformadora. Gaggan não apenas evoluiu — ele reinventou-se por completo!

Gaggan e Rahul Kanojia a ultimar detalhes antes do início do “show”

O que antes era uma revolução na técnica e nos sabores, agora expandiu-se para algo muito maior: uma imersão completa no mundo único de Gaggan, onde a sua personalidade irreverente e indomável dita as regras. Visitar o Gaggan em Bangkok é entrar num turbilhão de emoções, onde a gastronomia e o espetáculo se entrelaçam de uma forma que vai além de qualquer definição tradicional de restaurante. Aliás, chamar este espaço de “restaurante” seria bastante redutor, pois o que aqui se vive está mais próximo de um palco — um palco onde a comida é apenas uma peça de um espetáculo que envolve drama, música, comédia e uma dose bem calibrada de provocação.

Fábio Costa, o português que comanda todo o espetáculo orquestrado por Gaggan

Ao entrar no “G Spot”, nome informal da sala onde tudo acontece, torna-se claro que Gaggan não está interessado em reproduzir os códigos clássicos da alta gastronomia. Aqui, não existe a tradicional escolha do que se vai comer ou beber — tudo é determinado pela equipa. O chef e os seus cozinheiros não só nos dizem o que estará no prato, como também controlam todo o desenrolar da noite, desde quando se pode ir à casa de banho, ao momento em que se deve falar ou até cantar.

À primeira vista, pode parecer absurdo. E para muitos, é! Mas Gaggan não é para todos. Quem não estiver preparado para perder o controlo e ver subvertidas várias convenções pode desde já riscar o nome da sua lista de desejos. Será um favor que fará a si e a todos.

Iogurte & chutney – Um clássico transformado em scnack com esferificação de iogurte e chatt masala com uma folha crocante de chutney de menta.

Para aqueles que se dispõem a entrar nesse universo, a experiência é avassaladora, quase como uma viagem mental onde se mistura nostalgia, provocações e uma boa dose de humor. Cada prato parece carregar um conceito maior, onde Gaggan quebra expectativas e desafia percepções sobre o que é a alta gastronomia. A noite vai muito além da comida. É uma crítica ao mundo da restauração, aos dogmas que permeiam o cenário gastronómico global, e às narrativas que muitos restaurantes e prémios nos vendem. Um exemplo disso é o provocador prato “Rat Has Brains”. Longe de ser uma provocação vazia, é uma sátira mordaz sobre restaurantes sustentáveis, de Km zero e da auto-produção na selva de cimento e poluição que é Bangkok.

Papadum de gamba e shiso – uma massa crocante típica da Índia com shiso com a gamba crua.

Apesar de alguns olhares assustados nos comensais, claro que não se trata de um cérebro de rato sustentável criado na cobertura do edifício. Em vez disso, parece sim um saboroso soubisse repleto de cebola caramelizada e um agente solidificante com um pouco de beterraba a servir de sangue. Ou pelo menos foi isso que preferi acreditar, já que os ingredientes verdadeiros nunca foram totalmente revelados, e as opiniões à mesa divergiam nos seus constituintes.

Rat Has Brains

Toda a performance é liderada pelo próprio Gaggan, que assume o papel de mestre de cerimónias, DJ, e de ator principal, exibindo o seu carisma histriónico e a paixão que o tornou famoso. A sua equipa acompanha-o num ritmo quase teatral, numa coreografia ensaiada à exaustão, mas com margem suficiente para a espontaneidade e o improviso. A música, cuidadosamente escolhida, e a iluminação, que alterna entre tensão e alívio, ajudam a criar um ambiente que mais se assemelha a um show do que a um simples jantar.

Girasol de Espargos – Espargos trabalhados à exaustão para criar um jardim encantado no caos de cimento que escondia como “raíz” uma beterraba cozinhada longamente e recheada com gorgonzola.
Chole bhatura – um tipo de pão frito indiano à base de grão de bico que aqui se combina com cebola, chutney e vinagre balsámico para trazer um pouco do street food indiano à mesa.

De Ed Sheeran a Foo Fighters, de Backstreet Boys a Limp Bizkit, passando por Linkin Park, Panjabi MC e J Balvin, até ao momento ternurento em que “Hey Jude”, dos The Beatles, ressoa pela sala. Cada canção faz parte de uma narrativa pré-selecionada a partir da qual o cicerone vai improvisando a seu gosto, transportando-nos de um estado emocional a outro com grande facilidade.

Waffle de Café e Foie Gras – Waffle com um toffee de café e um foie ligeiramente marinado em licor de café. Uma leve dose de doçura entre pratos.
Toasta de Ouriço e Kiwi – uma combinação improvável que junta o ouriço japonês ao Kiwi para de forma surpreende juntar acidez à doçura maritíma do ouriço.
Satay de Bamboo e Curcuma com um “sangue” de rato e uma “pintura” de Gaggan

Ao longo de 22 momentos, nada é o que parece. Tudo é meticulosamente pensado para perturbar a ordem e construir um discurso afiado, onde técnica, precisão e sabor se unem numa harmonia que desafia a noção tradicional de alta gastronomia.

Gaggan expressa repetidamente a sua visão de igualdade à mesa, desmistificando o que é considerado “comida elitista” e aproximando-a da comida mais popular.

Isso traduz-se em pratos que, de forma desconstruída, desafiam a noção tradicional de alta gastronomia e fazem um paralelo com temas sociais e culturais.

Cores de Beringela – Feio e delicioso, um prato que usa a beringela a 100% , com uma combinação de especiarias, coco e jarra, com um molho feito a partir da casca da beringela queimada.

No entanto, como já mencionei, esta experiência não é para todos. Ou se ama ou se odeia. Ela exige uma entrega completa ao inesperado, uma aceitação das provocações e, acima de tudo, a disposição de entrar com a mente aberta, sem preconceitos. Um bom exemplo é a escolha de vinhos naturais, selecionada por Vladimir Kojic, o sommelier sérvio que acompanha a loucura criativa de Gaggan há vários anos.

Kojic apresenta rótulos excepcionais de produtores como Gut Oggau, Andreas Tscheppe, Tschida e Čotar, além de surpresas como um sake Hiokozakura e um champagne raro de Olivier Horiot que eu nunca esperaria encontrar numa harmonização. Uma seleção que surpreende até os críticos mais cépticos dos vinhos naturais.

Arroz de camarão selvagem – Basmati envelhecido por 3 anos, cozinhado com camarão, caril e sorrel. Um momento delicioso que teve direito a repetição.

Para aqueles dispostos a abraçar o inesperado, o caos organizado de Gaggan oferece uma das noites mais memoráveis e divertidas que se pode ter à mesa. Uma experiência que transcende a gastronomia, permanecendo viva na memória muito depois das luzes se apagarem e o último acorde de música ecoar pela sala.

Uma família de ratos felizes

Preço: 430€ com paring e taxas
68 Sukhumvit 31, Sukhumvit Rd, Wattana – Bangkok

Fotos: Flavors & Senses
Textos: João Oliveira
Versão Inglês
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