Sühring – Ou como a Alemanha conquistou a Ásia

Bangkok. Uma cidade de contrastes, onde o caos dos mercados e o perfume intenso das ruas se misturam com a tranquilidade inesperada dos templos gastronómicos. Conhecida mundialmente pelos seus sabores de rua autênticos e acessíveis, a cidade tem, nos últimos anos, conquistado para si uma nova faceta, a de destino de fine dining, com aberturas luxuosas e grandes conquistas nos guias internacionais.

Entre essas opções, talvez a mais invulgar, seja o Sühring, um restaurante que se predispõe a recriar a cozinha tradicional alemã, baseada nas memórias e no receituário familiar dos gémeos Thomas e Mathias.

Se por um lado os gémeos não eram desconhecidos na cena gastronómica da cidade, após passagens por Itália e Holanda, encontraram o seu lugar em Bangkok e assumiram a liderança do Mezzaluna, um dos restaurantes de referência na icónica Lebua Tower. Contudo, foi com o Sühring que os irmãos encontraram a oportunidade de expressar a sua visão pessoal e técnica da culinária alemã.

Localizado numa charmosa casa dos anos 70, situada num bairro residencial longe do caos urbano, o Sühring exala serenidade. Ao cruzar os seus portões, entramos numa atmosfera acolhedora e luxuosa, onde o design nórdico se mistura com o verde exuberante dos jardins. Ali, o ritmo frenético de Bangkok parece desvanecer, dando lugar a uma experiência intimista e cuidadosamente orquestrada.

A sala onde fomos acomodados, envidraçada e decorada com madeira e metal, oferece um equilíbrio perfeito entre o conforto e a sofisticação discreta. O ambiente é informal o suficiente para nos fazer sentir confortáveis, mas não nos deixa esquecer o prestígio das duas estrelas Michelin que austentam e a ambição dos irmãos Sühring de alcançar ainda mais.

O início da experiência
Começamos com um espumante alemão, Griesel Grande Cuvée 2018, uma combinação das três castas mais clássicas de Champagne. Um vinho que, com a sua seriedade e harmonia, já sugeria que aquela tarde seria uma jornada de sabores cuidadosamente pensados e executados.

E assim, fomos introduzidos aos primeiros snacks. No Sühring, a única escolha disponível é o menu de degustação, embora alguns pratos icónicos possam ser adicionados à experiência. Cada prato que chegava à mesa trazia uma pequena história, uma memória dos irmãos, recriada com uma precisão técnica invejável e uma pitada de diversão.

Obatzda – camembert, paprika, alho e “cerveja”

O Obatzda, um típico dip de queijo com notas picantes, foi reimaginado de forma criativa, servido com uma massa crocante recheada e acompanhada de mini canecas de “cerveja”. A brincadeira com as referências ao Oktoberfest arrancou sorrisos logo no início. Onde há alemães tem de haver cerveja!

Brathering – Arenque, mostarda e pickles

Na sequência, o Brathering destacou-se pela sua apresentação elegante e pela harmonização entre o arenque, mostarda e pickles, elevando o prato tradicional a outro nível. Um dos meus momentos favoritos, sem dúvida.

Grüne Erbsen – Ervilha, flor de sabugueiro e cogumelos

Quando as ervilhas entraram em cena no prato Grüne Erbsen, não pude evitar lembrar-me das minhas próprias experiências de infância e os estufados de legumes. Aqui, essas “mal amadas” ervilhas foram elevadas a um nível máximo de qualidade e textura, sobre uma tartelete crocante com cogumelos e flor de sabugueiro.

Labskaus e Caviar Aki Imperial Ossetra

Um dos ápices da refeição foi o Labskaus, um prato tipicamente rústico, transformado em algo moderno refinado na sua forma e elevado pela adição de caviar ossetra. O contraste entre o corned beef, a beterraba e as notas salgadas do caviar proporcionou uma experiência de pura indulgência.

Foi um daqueles momentos em que pára tudo e nos lembramos por que gostamos tanto destas viagens gastronómicas.

Enleta – Wafer, Foie Gras, avelã e alperce

Seguiu-se um snack divertido, Enleta, uma recriação das wafers alemãs “Hanuta”, recheadas aqui com foie gras de pato, avelã e alperce. Uma combinação inesperada que surpreendeu o paladar, ainda mais quando conjugada na prova com o vinagre de Pfalz envelhecido que acompanhava o prato. A acidez equilibrada e as suas notas cortaram a gordura e funcionaram em pleno com o prato.

Aal Grün – Enguia fumada, pepino, endro e ovas de lúcio

A delicadeza continuou com o Aal Grün, um prato pesado, com enguia cozida em caldo, servido com batatas e um molho feito com roux, recriado de forma refrescante, onde a enguia fumada se destacava num prato repleto de frescura e leveza. Para acompanhar, um Clemens Bush Marienburg Fahrlay Riesling GG 2016, com as suas notas doces e sedutoras e um equilíbrio impecável.

Como em qualquer bom restaurante não podia faltar o pão. No Sühring, a modernidade não interfere com o que é essencial. Três tipos de pães artesanais, feitos na casa, servidos com uma ótima manteiga na temperatura perfeita. Um detalhe que reforça a ideia de que algumas tradições não devem ser quebradas.

Vieira e Caranguejo RealRaíz forte, estragão e kombu
Este prato traz uma combinação equilibrada de frescura e sofisticação. A delicadeza da vieira crua, em formato de carpaccio, unida à doçura subtil do caranguejo real, cria uma harmonia impecável, onde os molhos de raiz forte e estragão adicionam um toque de leve picância. A presença do kombu oferece um elemento de profundidade e textura, criando uma sensação de frescura que, sem dúvida, define bem a cozinha dos irmãos Sühring. A harmonização com o Sauvignon Blanc Wagner Stempel 2022 trouxe a minha habitual relação de amor/ódio com a casta, mostrando-se aqui mais o ódio, ofuscado pelo vinho anterior, resultando num contraste menos impactante.

Truta do ártico Couve flor, amêndoa e caviar
De visual mais simples, mas de sabor incrivelmente complexo, a truta do Ártico escalfada em manteiga apresentou-se como um dos pratos mais reconfortantes do menu. A textura macia do peixe foi enriquecida pela cremosidade da couve-flor e pelas notas aveludadas da amêndoa, enquanto o caviar oferecia um contraste salgado que elevava o prato. A simplicidade dos ingredientes contrastava com a sofisticação das técnicas empregues, resultando num prato de sabor suave e refinado.

A harmonização com o Salwey Kirchberg Weissburgunder GG 2016, com a sua mineralidade e notas cítricas, complementou de forma elegante a suavidade amanteigada da truta.
Leipziger AllerleiLagostim Xxl, espargos brancos, ervilha e morchella
Uma recriação moderna do tradicional prato alemão Leipziger Allerlei, que normalmente combina legumes cozidos com um molho de lagostim do rio, este prato foi uma verdadeira celebração do lagostim, que roubou todo o protagonismo. Cozido na perfeição, o lagostim destacou-se sobre os espargos brancos, ervilhas e morchella, que, embora presentes, acabaram por ceder, e bem, o palco ao crustáceo, passando a ser os seus acompanhantes. Foi uma combinação rica em texturas, mas equilibrada em sabor. O vinho Gaja Vista Mare Ca’Marcanda 2022, um italiano que evoluiu de forma surpreendente ao longo da refeição, acompanhou lindamente o prato, mostrando diferentes características à medida que se desenvolvia no copo.

Spätzle com Trufa Negra Australiana, Queijo Allgäuer e Cebola Crocante
Estando a meio da refeição, fomos convidados a visitar a cozinha e assistir à preparação do prato seguinte. Spätzle é um clássico alemão, mas nas mãos dos irmãos Sühring, transformou-se numa verdadeira obra-prima. A massa caseira, enriquecida com o sabor  e o aroma único da trufa negra australiana, foi acompanhada por um molho de queijo Allgäuer e cebola crocante, criando uma explosão de sabores ricos e reconfortantes. O prato capturou o espírito da cozinha europeia com um toque de opulência, mostrando que, com técnica e ingredientes de alta qualidade, até os pratos mais simples podem ser extraordinários.

A trufa negra australiana estava num ótimo ponto de maturação

O Keller Sparburgunder Frauenberg GG 2020, um Pinot Noir de grande elegância, foi a escolha perfeita para acompanhar este momento, destacando-se como o melhor vinho da refeição e certamente um dos melhores Pinots feitos fora da França.

A dada altura recebems a apresentação do Pato que viria a tornar-se no prato principal deste almoço.

Pato – Pêssego, Nibs de cacau e raízes
O prato principal, um pato maturado por dez dias e fumado, foi apresentado com uma precisão técnica que demonstrou toda a capacidade dos chefs. A carne, tenra e saborosa, foi acompanhada por pêssego levemente assado e nibs de cacau, criando um equilíbrio interessante entre a doçura da fruta e o amargor do cacau. As raízes, destacando-se a beterraba, completaram o prato com uma profundidade terrosa. O único ponto que me deixou a desejar foi a falta de uma pele crocante, algo que teria elevado ainda mais a experiência, mas que é menos usual na cozinha europeia. O vinho Pommard Clos Marey-monge 2017 do Château Pommard, apesar de excelente, acabou por perder impacto ao ser servido logo após o incrível Pinot Noir anterior.

O momento do queijo

Como em qualquer grande refeição, o momento do queijo foi um destaque à parte. O Käsefondue foi reinventado com uma explosão de sabores intensos de Époisses e trufa, harmonizado com o Melsheimer Likorwein 2018, um vinho fortificado de riesling que trouxe uma doçura equilibrada, complementando perfeitamente o prato. Foi uma transição suave e sem excessos para o capítulo final da refeição.

A pré-sobremesa serve-se com gelado de espinheiro marítimo e Tangerina com óleo de louro e pimenta rosa

Omas KäsekuchenCheesecake, morango e shiso
Parece que não é só em New York ou no País Basco que o cheesecake arrebata todos os corações, também na Alemanha existe a sua versão. Como no Sühring nada é bem o que parece, a sobremesa tradicional da sua avó surge com uma delicada base de sabor a queijo e uma panóplia de texturas e sabores mais frescos às quais se junta um morango delicadamente trabalhado. Algo que a senhora certamente não reconheceria como a sua sobremesa, mas que foi um final feliz para um almoço já longo e bem preenchido.

Para fechar, fomos presenteados com um egg nog gelado, feito a partir de uma receita da avó dos irmãos Sühring, e acompanhado por pequenos pralinés que capturaram o espírito festivo e caloroso da refeição. O Egon Muller Spatlese Scharzhofberger 2022, com as suas notas de fruta de pomar madura e uma harmoniosa combinação de doçura e acidez, foi um dos pontos altos entre os vinhos, ainda que jovem e promissor, trazendo um final doce e memorável para esta longa jornada gastronómica.

A carta de vinhos assenta sobretudo sobre as grandes referência alemãs conjugadas com vinhos Europeus de renome. Uma seleção difícil que merece particular destaque tendo em conta as regras e os custos de importação no país.

Ao longo de toda a tarde, o serviço foi impecável, com a fluidez e técnica que se espera de um restaurante com ambições de alcançar a terceira estrela Michelin. Cada prato foi servido com precisão, acompanhado de histórias que nunca caíram no exagero ou no aborrecimento.

Thomas e Mathias Sühring no final de um serviço memorável

Considerações Finais
Ao longo de quatro horas, o Sühring oferece mais do que apenas uma refeição – é uma viagem pelas memórias e pela cultura alemã, reinterpretada de uma forma que combina amor e sátira com uma técnica invejável pelos irmãos Thomas e Mathias Sühring. Cada prato surge como um fragmento de uma memória familiar, contada com precisão técnica e uma pitada de humor.

Dentro daquela casa, senti-me transportado para uma Alemanha reinventada, moderna, mas que nunca se esquece do que é essencial. Numa época em que muitos dos melhores chefs alemães criam as suas cozinhas baseadas em influências modernas e de ingredientes e sabores mais japones que propriamente alemães, é revigorante ver como os irmãos Sühring mantêm a essência da sua culinária. E o mais impressionante é que fazem isso fora da Alemanha, onde poderiam facilmente ser totalmente incompreendidos.

Saí do Sühring com a sensação de ter vivido algo especial, algo que, embora já esteja num altíssimo nível, ainda me parece estar em evolução. Isso deixa-me ansioso para ver até onde os irmãos Sühring poderão levar a sua cozinha.

Uma coisa é certa: o Sühring é um restaurante único no mundo, e é exatamente essa mistura entre tradição, inovação e até a própria localização que o torna tão fascinante.

Preços a partir de 180€ (sem vinhos)
10 Soi Yen Akat 3, Chong Nonsi, Yan Nawa, Bangkok – Tailândia

Fotos: Flavors & Senses
Textos: João Oliveira
Versão Inglês
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