Herdade do Esporão – Uma cozinha que cultiva silêncio, sabor e propósito

No Alentejo, o horizonte é uma questão interminável. Planícies que se estendem até onde a vista alcança, pontuadas por sobreiros ancestrais que parecem guardiões de segredos e saberes antigos. Foi entre essas nuances naturais, pelas quais o tempo parece não correr, que chegamos ao nosso destino. Um palco de vastidão em que se ergue a Herdade do Esporão – não como imposição, mas como extensão natural da própria paisagem. Um projeto que, há décadas, se recusa a sepultar o tempo sob o peso da pressa contemporânea.

Sob a liderança de Carlos de Albuquerque Teixeira, o restaurante da herdade conquistou uma estrela Michelin e, talvez aqui mais significativa, a estrela verde. Mas os selos, verdadeiramente, interessam pouco. Porque no Esporão não se cultiva a distinção — cultiva-se a terra. E a partir dela, uma cozinha de rosto limpo, gesto firme e profundo respeito pelo ciclo natural das coisas.

Aqui, a sustentabilidade não é hashtag para marketing digital – é premissa silenciosa, quase dogmática, que fundamenta cada decisão.

Uma decisão de quem sabe que, antes de qualquer virtuosismo técnico, vem o gesto de observar, de compreender, de escutar. O resultado é uma experiência gastronómica que recusa o ruído e aposta na ressonância.

Prólogo de campo

A primeira ideia chega num arranjo líquido de morango combinado com fermentado de sabugueiro e perfumado com óleo de hortelã – uma composição que evoca mais um amanhecer alentejano do que qualquer pretensão gastronómica. É um prelúdio de transparência, refrescante na medida certa e um porto de partida para a exploração sazonal da herdade.

Pão, foccacia com pisto e as gorduras tradicionais do Alentejo
Pão, foccacia com piso e as gorduras tradicionais do Alentejo

Depois, o Ameal 2023 e o ritual do pão – esse gesto primitivo que, nas mãos certas, permanece revolucionário. Sourdough de massa-mãe cultivada na herdade; focaccia com piso fresco e amêndoa local; acompanhados por um tríptico de gorduras territoriais: manteiga de porco alentejano (com aquela suavidade que contradiz o seu próprio nome), manteiga aromatizada com especiarias do horto e azeite de variedade galega – líquido denso que escorre como ouro, capturando a luz da sala.

Este não é apenas um começo – é uma declaração geográfica. É uma afirmação de princípio.

Antes de mergulharmos nos pratos, convém destacar a estrutura da proposta: dois menus de degustação, um com 5 e outro com 7 momentos, que variam regularmente segundo os ciclos produtivos da herdade. A acompanhar, três propostas de harmonização vínica, todas elas compostas por vinhos da casa — com perfis distintos que atravessam o Alentejo, os Verdes e o Douro, sem nunca perder o fio condutor do terroir. Com uma criança pequena à mesa, optámos pelo menu mais curto — uma decisão prática que, ainda assim, não comprometeu a riqueza da experiência.

trio de snacks
trio de snacks

Cozinha vegetal com cabeça e mãos

Os snacks chegam como miniaturas de precisão agrícola, que quase parecem exercícios de arqueologia gastronómica: Carlos escava camadas de sabor onde outros veem apenas ingredientes mundanos. O tártaro de lúcio-perca do Alqueva, servido com um vinagrete de maçã ácida e estilhaços de pipoca de porco, revela um respeito quase obsessivo pelo produto local. O Cannelé de farinha de legumes – pó que concentra sabores esquecidos da horta – serve de base para uma composição com feijão-verde, maçã verde e uma espuma de alho que flutua como névoa matinal.

Tártaro de lúcio-perca do Alqueva
Tártaro de lúcio-perca do Alqueva

É na tartelete de beterraba fumada com iogurte de ovelha que o chef reafirma o compromisso com a sazonalidade e o aproveitamento da quinta. A intenção parece clara: transformar o óbvio em extraordinário, sem excessos, sem desvirtuar. Há aqui uma economia de gestos que contrasta com o maximalismo sensorial. Mais do que estética — que é irrepreensível — há pensamento e instinto. Cozinha que sabe onde está e não tenta ser outra coisa.

Courgette em diferentes composições e texturas
Courgette em diferentes composições e texturas

A courgette — tantas vezes insípida, tantas vezes esquecida — encontra aqui redenção. Vegetal de água, frequentemente reduzido a sopa ou complemento dietético, encontra aqui a sua redenção numa sequência tripartida: tartelette crocante de cevada com miso caseiro de grão; puré sedoso de courgette perfumado com hortelã selvagem colhida na ribeira da herdade; e, finalmente, uma flor de courgette em tempura delicada, recheada com requeijão de ovelha – lácteo, vegetal, terrestre.

A bagna càuda e a gema fumada completam o puré e esta narrativa com um subtexto de umami e gordura. Acompanhada pelo Ameal Reserva 2022, de estrutura mais complexa mas igualmente precisa, este prato sintetiza o manifesto não-escrito que Carlos parece querer transmitir-nos:

encontrar profundidade onde outros veem superfície, extrair eloquência do mais inesperado — sem pedir desculpa por isso.

Do rio à serra

O peixe – lúcio-perca grelhado – chega sem artifícios. Acompanha-o um puré de funcho na sua pureza aromática, uma salada do mesmo vegetal (cru, fermentado e em pickle), molho de lagostim de rio, escamas crocantes e uma espetada do crustáceo que funciona como contraponto textural. É um prato que parece mapear um território que começa no rio sem nunca perder a conexão aromática com a terra. Muito bom.

Bebeu-se Esporão Private Selection 2021 um raro caso de Semillon no Alentejo que tem sabido perdurar no tempo. Notas de fruta branca e um final persistente que acompanhou bem a profundidade do molho.

Lúcio-perca, funcho e lagostim de rio
Lúcio-perca, funcho e lagostim de rio

Mas é na costeleta de borrego que o chef e a sua equipa voltam a demonstrar uma cozinha com confiança: servir um corte “menos nobre” ou um arroz — ainda que hoje isso comece a virar tendência — é aqui apenas a escolha certa: produto inesperado, bem tratado, sem artifício. Um arroz guloso e no ponto, preparado com arroz bomba da Aparroz (cultivado em Alcácer do Sal, a menos de 100 km), e servido com fígado e salada de laranja.  Acompanhou e bem com um Alicante Bouschet 2015.

Não será uma afirmação política — apenas a convicção de que a verdadeira sustentabilidade começa nas escolhas antes do aproveitamento integral e respeitoso. É um prato improvável para um restaurante Michelin — e por isso mesmo necessário. Uma chapada de luva branca no instituído.

Gelado de malte, mousse de azeite e bolo de cenoura
Gelado de malte, mousse de azeite e bolo de cenoura

O segmento final revela-se como o mais contido – se fosse poesia, diríamos que o chef quis deixar a refeição dissipar-se gradualmente, em vez de terminá-la com exclamação. Gelado de malte, mousse de azeite cordovil, caramelo, bolo de cenoura e avelã. Saboroso, sim, mas menos inspirado em forma e construção. Como um encore morno depois de um concerto memorável. Ainda assim, cumpre o propósito: fechar o ciclo da quinta sem trair a lógica do menu.

Enquanto muitos templos gastronómicos transformam a presença de crianças num inconveniente tácito — e sim, concordo com muitos deles — o Esporão integra-as na sua narrativa. Há um menu infantil que não infantiliza, que não recorre a nuggets ou a pasta sem graça. Em vez disso, apresenta pratos cuidados e a mesma filosofia — um gesto que reconhece que o paladar, como qualquer linguagem, se aprende gradualmente.

Os pairings vínicos, feitos exclusivamente com vinhos do grupo, poderiam facilmente resvalar para uma celebração corporativa autoindulgente, como tantas vezes vemos. Mas aqui, curiosamente, funcionam. Porque os vinhos percorrem várias regiões, estilos e intenções, e ajudam a reforçar a ideia de que este é um projeto completo — onde tudo está interligado. Ainda assim, um desvio ocasional ou uma viagem por colheitas bem mais antigas poderia trazer um agradecido oxigénio.

Considerações Finais

No centro de toda esta experiência está Carlos Teixeira — um cozinheiro que fala pouco e cozinha muito. Que não procura palco, nem se apressa a replicar colegas e tendências. Que rejeita a coreografia da alta cozinha mediática em favor de um gesto silencioso e firme. Há nele uma maturidade rara: a de quem sabe onde está, e, mais importante, o que não quer ser.

No meio de tantos restaurantes que brilham por fora e se repetem por dentro, o Esporão faz o oposto: brilha por dentro, com uma cozinha que não tem necessidade de se anunciar porque está fundamentada em algo muito mais profundo que o imediatismo de um aplauso. A sua é uma gastronomia de raízes longas – menos preocupada com o que floresce à superfície do que com o sistema invisível que sustenta tudo.

O Esporão não é apenas um grande restaurante – é um lembrete necessário. De que o silêncio pode ser mais eloquente que o ruído. De que a contenção pode ser mais revolucionária que o excesso. De que, por vezes, o gesto mais radical é simplesmente fazer o que é certo, com paciência e sem alarde. Sempre com crença e dedicação.

Na paisagem cada vez mais ruidosa da alta gastronomia, esta é uma voz que sussurra – e, precisamente por isso, merece ser escutada com atenção redobrada.

O Esporão é uma lição de contenção, substância e verdade. Um daqueles raros lugares onde tudo parece estar exactamente onde deve estar. E continua, com isso, a ser a mais relaxada — e acessível — proposta estrelada em Portugal. Obrigatório.

MORADA: Herdade do Esporão, Reguengos de Monsarraz
RESERVAS: 266 509 280
ABERTO: Terça a Sábado, 12h30-15h00
PREÇO MÉDIO: €115 (sem vinhos)
IMPERDÍVEL: Pratos vegetais, Lúcio-perca e Borrego

Fotos: Flavors & Senses
Textos: João Oliveira
Versão Inglês
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