Estremoz, Verão de 2024. No Alentejo, o tempo corre de forma diferente. Estica-se como o calor que ondula no horizonte, repousa sobre as pedras brancas e só avança quando o corpo e a alma estão prontos. São 13h27 quando atravessamos o limiar de uma antiga casa senhorial, agora transformada num interessante caso de estudo da nova gastronomia portuguesa.
Há cinco ou seis anos, o interior era onde se ia para escapar. Hoje, é para onde se vai para descobrir. A revolução gastronómica alentejana não chegou alto e em bom som — infiltrou-se silenciosamente, como luz entre as frinchas de uma janela secular. Longe dos centros urbanos e dos clichés regionais, surgem restaurantes de autor, hotéis discretos mas pensados ao detalhe, e cozinhas que respeitam o território sem se limitarem a replicar os seus códigos.
A Casa do Gadanha, em Estremoz, é uma dessas declarações de maturidade. Um lugar onde o interior deixa de ser cenário para se afirmar como origem, onde a cozinha de autor ganha forma sem gritar. Não é apenas um restaurante. É um projeto com sentido — e, no caso de Michele Marques e Ruben Trindade Santos, com coração e muita substância.
Projecto de Resiliência
A Mercearia Gadanha surgiu em 2011, num momento em que Portugal ainda procurava lidar com a crise financeira. Michele Marques, proprietária de perfil discreto e visão clara, transformou um antigo comércio num híbrido de épicerie fina e restaurante casual. Numa vila de cinco mil habitantes, muitos diriam que era loucura. Foi visionário. Em pouco tempo, tornou-se um marco em Estremoz e um ponto obrigatório para quem queria ver o interior a cozinhar com alma e ambição.
Em 2019, a evolução: pegaram num antigo palacete senhorial e transformaram-no num boutique hotel com apenas 12 quartos, onde cada espaço foi pensado como uma extensão da filosofia da casa: rigor, detalhe, bem-receber. No rés-do-chão, criaram o restaurante Casa do Gadanha, onde Ruben assume a cozinha com uma proposta clara: cozinha de autor alentejana, baseada em 90% de ingredientes locais, sazonais, e quase sempre de pequenos produtores.
É um projeto que recusa a ideia de que o interior tem de ser rústico ou turístico. É fino, mas despretensioso. Contemporâneo, mas com raízes. E acima de tudo, é honesto — com o território, com o produto, e com quem se senta à mesa.
Anatomia de uma Refeição
Chegámos num dia de semana de verão. A cidade tranquila, o calor lento e a sala a meio gás. O espaço é simples, modesto, mas bonito e cuidado. Arejado, com paredes de pedra, luz natural e detalhes alentejanos bem escolhidos. A equipa recebe-nos com um sorriso sereno, daqueles que não fazem cerimónia mas sabem o que estão a fazer. O serviço é atento, fluido, e descontraído, com aquele tempo à mesa que só o Alentejo parece dar.
Ruben, que conta na sua bagagem com passagens pelo Ocean, o Feitoria e até o londrino Viajante ao lado de Nuno Mendes, propõe um percurso que pode ser feito através de um menu de degustação ou pratos pensados para partilhar. Com uma criança à mesa, optámos por este último modelo. (Aquando da nossa visita, ao lado de Ruben estava Francisca Dias, agora no Esteve, em Borba, que comanda em nome próprio.)
Começámos com pão sourdough, ainda morno, de crosta crocante e miolo húmido, acompanhado por uma manteiga de porco batida com pimentão e um bom azeite. Um arranque simples, mas carregado de intenção: o pão que se ouve ao partir, e as gorduras seculares que alimentam o Alentejo. Tudo está no lugar certo.

Seguiu-se o tártaro de atum com limão e muxama. Atum cortado à faca, bem temperado, com acidez controlada, e as lascas da muxama a acrescentar profundidade e sal. A muxama — o presunto do mar — é um aceno ao sul, ao Algarve, mas encaixa-se aqui com naturalidade. Tudo refrescado e ligado por uma maionese de ostra, que reforçava a maresia no interior do Alentejo.

A beringela com mel, especiarias e caju chegou em modo reconfortante. Assada no forno até ficar quase cremosa, foi depois glaceada com mel e um blend subtil de especiarias que lhe conferiam um toque doce e misterioso, fazendo-nos viajar até Marrocos ou ao Médio Oriente. O iogurte natural trazia acidez, os cajus crocância, e um fio de azeite local ligava tudo. Um prato vegetal, mas cheio de densidade e memória. São poucos os pratos que me fazem gostar de beringela — e este foi um deles.

Com pompa e circunstância, chegou um dos momentos altos: ovos com gamba do Algarve e caviar. Ovos de codorniz, magistralmente fritos — à la Rafa Zafra — combinados com uma maionese feita a partir de uma bisque intensa de gamba, numa combinação que era quase um pequeno-almoço de luxo. A gamba, perfeita, crua, dava o toque doce-marinho, e o caviar oferecia o contraste final. É um prato que reconcilia o conforto com o requinte, e que claramente não se espera encontrar no coração de Estremoz.

Continuando no mar, veio o lavagante com manteiga de cabra e cebolo. O lavagante, suculento, foi cozinhado com precisão. A manteiga de cabra — que tantas vezes vemos a acompanhar lula — sente-se mais ácida e leve do que a de vaca, napava com delicadeza, e o cebolo verde, levemente assado, trazia frescura e um sabor vegetal subtil. A marcar presença, ainda um croquete de lavagante e caviar menos interessante. Um prato minimalista, ainda que luxuoso — que deixou um misto de sensações. Se por um lado a cocção irrepreensível da cauda convidava ao saboreio, todo o conjunto se assemelhava a um juntar de peças que nem sempre encaixam. Faltou algo mais.

O prato de carne — como quase sempre acontece quando aparece num menu — foi molejas de borrego com nabo e pistáchio. Um prato sério, corajoso, e talvez o mais surpreendente da refeição, com o seu molho guloso. As molejas, bem cozinhadas, ligavam na perfeição com o puré — terroso, suave — e o molho escuro, reduzido, que unia tudo com profundidade. Os pistáchios tostados acrescentavam textura e um leve perfume doce. Um prato com alma, que fez as delícias de todos.
Enquanto os adultos se entregavam à degustação, houve também tempo para partilhar uma pizza margherita, pedida para a criança da mesa (que entretanto decidiu, e bem, trocar a pizza pelas molejas). Massa de fermentação lenta, molho de tomate artesanal, mozarela fresca e forno a lenha. Simples, mas bem feita. Um gesto de cuidado que mostra que esta é uma casa que pensa em todos — sem comprometer qualidade e identidade na escolha dos ingredientes.

A sobremesa foi “Morango”: granizado da fruta, merengue, morangos frescos, nata batida e crumble. Texturas, frescura, doçura controlada. Uma sobremesa de verão que não pesa. Fecha a refeição com leveza e elegância.
Para beber, escolhemos um Cabeças do Reguengo “Quartzo”, branco de Portalegre, de altitude, com acidez viva e perfil fumado e mineral. Acompanhou tudo com discrição e inteligência, ligando particularmente bem com os sabores mais marinhos.
Considerações Finais
A Casa do Gadanha é um daqueles lugares que nos fazem acreditar no futuro do Alentejo — não como destino exótico ou como cenário de evasão, mas como um território pleno de expressão contemporânea, com projetos enraizados e ambiciosos. Michele e Ruben conseguiram criar um espaço onde se dorme e come bem, mas onde também se respira uma certa ideia de Portugal — um Portugal que olha para dentro com respeito e vontade de fazer melhor.
A cozinha de Ruben é limpa e precisa, uma cozinha que já superou a necessidade de impressionar. Não precisa de gritar para ser notada. É uma cozinha que amadureceu, que já viajou, e que agora encontra paz na simplicidade bem feita. E isso, hoje, vale muito.
O serviço é discreto, atento, com uma equipa jovem mas bem treinada. A sala tem alegria, e a casa respira história com frescura. Há espaço para crescer, mas há, acima de tudo, consistência e verdade.
Num Alentejo que floresce, a Casa do Gadanha é flor rara: bonita, silenciosa, mas impossível de ignorar. Uma prova viva de que a excelência gastronómica portuguesa não precisa de se concentrar nas grandes cidades. Um lugar onde a sofisticação não pesa, e onde o tempo — esse tempo tão especial — se saboreia em cada prato.
Quando deixamos o restaurante, o sol já declina sobre as muralhas de Estremoz. No horizonte, entre oliveiras e sobreiros, o Alentejo estende-se infinito. Mas já não é o mesmo Alentejo que conhecíamos. É um lugar que, silenciosamente, se transformou num dos territórios gastronómicos mais inovadores e interessantes do país. E a Casa do Gadanha é uma das razões para isso.
MORADA: R. Vasco da Gama 6, 7100-559 Estremoz
RESERVAS: 268 249 793
ABERTO: Sexta a Terça, 12h30-14h30, 19h30-21h30
PREÇO MÉDIO: €45 (sem vinhos)
IMPERDÍVEL: As molejas de borrego com nabo; A vista do terraço do Hotel durante o pôr-do-sol
Hotel: O hotel dispõe de 12 quartos (€120-€175), incluindo duas suites com terraço privativo.