Em pleno verão alentejano, com o sol a dourar as planícies e a brisa quente a sussurrar histórias antigas, encontrámo-nos em Évora, cidade-museu de ruas empedradas e memórias que ecoam nas paredes brancas. As férias prometiam descanso e descobertas gastronómicas, e foi assim que, numa noite estrelada de clima convidativo, nos propusemos a cruzar as portas do Palácio dos Duques do Cadaval. Mas, em vez de celebrações de tempos idos, dignas de princesas e herdeiros, celebrámos a proposta contemporânea do Cavalariça Évora.
O Espaço Que Respira História
Aqui, pisamos o chão de pedra polida pelo tempo. A esplanada, com as suas árvores e fontes na ampla zona exterior, contrasta com o teto alto e as paredes robustas que testemunharam séculos de histórias. No entanto, há algo novo aqui – murais vibrantes de Esther Mahlangu que falam de terras distantes, uma luz quase teatral que dança sobre mesas de madeira rústica e um ambiente com reminiscência andaluz e marroquina. O contraste é deliberado, quase provocador: as diferentes culturas não competem, conspiram e criam!
Sentamo-nos. O ambiente é despretensioso mas cuidadosamente planeado; cada elemento parece ter sido colocado com propósito, como ingredientes numa receita complexa. Não é minimalismo, é essencialismo. Como o moderno candeeiro de mesa que me salvou a noite – fotograficamente falando, claro!
Os Artífices Do Sabor
Como é habitual nestas crónicas gastronómicas, entre a nossa visita e a publicação do texto, o tempo – sempre implacável – trouxe mudanças. Bruno Caseiro, o chef que concebeu e deu alma ao conceito Cavalariça, assinou as cartas e definiu a identidade culinária destes espaços até muito recentemente, já não se encontra à frente do grupo. No entanto, tudo o que aqui narramos parte inequivocamente do seu universo criativo, da sua visão que, apesar do início tardio, atravessou cozinhas renomadas como as do Belcanto, O Viajante, o Chiltern Firehouse e a Taberna do Mercado ao lado de Nuno Mendes.
À data da nossa visita, era já Catalina Viveros quem conduzia a cozinha do Cavalariça Évora, imprimindo, ao lado de Bruno Caseiro, a sua perspetiva global à matriz e aos produtos alentejanos. A chef chilena, que agora assume a posição de chefia do grupo, soube preservar a essência da abordagem despretensiosa e do respeito profundo pelos ingredientes que caracterizam a filosofia original, adicionando nuances que refletem a sua própria jornada gastronómica.

Não surpreende, portanto, que em 2025 o Cavalariça Évora tenha sido reconhecido como restaurante recomendado no prestigiado Guia Michelin Portugal.
A Narrativa Gastronómica
O pão chega – alentejano e broa de centeio – preparados na casa e acompanhados por manteiga fermentada que derrete lentamente e um dos melhores azeites virgem extra produzidos em Portugal, que fala por si só. As tostas crocantes de massa mãe foram uma agradável surpresa de texturas; no entanto, o pão e a broa de centeio careciam da leveza que esperávamos, sendo demasiado densos e secos para um pão alentejano. Um contraste curioso numa terra onde o pão é quase religião e com um chef que gosta de dar destaque ao pão que produz. Certamente um dia menos bom no forno do Cavalariça.
As carnes curadas alentejanas e os queijos não são meros aperitivos; são uma cartografia dos produtores locais, com uma clara alusão de que “em bom produto mais vale não mexer”, trazendo assim um pouco de tradição e simplicidade a uma carta repleta de nuances e técnicas distintas.

As empanadas de borrego são pequenos tesouros dourados que escondem um interior suculento, uma viagem pela herança cultural da chef, que, nesta representação alentejana do clássico chileno, eleva-o com um molho verde de algas que traz o mar para o interior alentejano – uma provocação deliciosa aos mais puristas.

A tempura de vegetais surge como um haiku japonês interpretado com sotaque alentejano – feijão-verde, kale e courgete em vestes crocantes de elevadíssimo nível técnico, que, mergulhados num dip cítrico de limão e coentros, cortavam a fritura com precisão e frescura.

A tortilha alentejana é um abraço familiar, uma representação exímia desse clássico de nuestros hermanos, feita a partir de produtos alentejanos: batata, ovos e cebola, a brilhar num palco repleto de estrelas mais cintilantes e apelativas.
Já o carpaccio de atum com molho tonnato e mizunas é uma viagem, um diálogo entre culturas que representa bem o universo criativo por onde Bruno se foi moldando. Fantástico o reforço de sabor do atum com o molho tonnato, o contraste de texturas, a leve acidez e a doçura subtil da fruta que também marcou presença.

O tártaro de vaca com maionese fumada é uma leve reinterpretação do conjunto tradicional, tecnicamente bem executado, com um toque de “faça você mesmo” na mistura dos ingredientes e servido com ótimas tostas de pão alentejano. Bom, mas sem o toque distinto e surpreendente de outros pratos.

Os Momentos Decisivos
É na lula salteada que encontramos o clímax desta experiência. Perfeita na textura – tenra, mas firme – encontra na batata nova ao sal uma companheira digna. O molho fumado de tinta de choco é a sombra que realça a luz, profundo, quase primordial, enquanto o esparregado contemporâneo traz notas da terra à equação. Este é um grande prato que não esconde as suas raízes, mas também não se limita a elas.
O prato de peixe selvagem navega por águas mais puristas, confiando na frescura do peixe e na execução impecável. O pil-pil de mexilhão é a onda que o transporta e conjuga, salgado no ponto e untuoso, enquanto as notas de funcho nos levam a viajar para outras paragens. Perfeito o ponto do peixe, com o sabor inconfundível do mexilhão.

O cachaço de porco alentejano, acompanhado de maçã e pastinaca fumada, apresentou-se suculento e cheio de sabor, irrepreensível na textura e no molho. Sendo a maçã e a pastinaca fumada o contraponto e eco, doçura e profundidade, num casamento harmonioso. As batatas fritas de tripla fritura foram um capricho necessário para quem se senta à mesa com uma criança, um momento de pura e dispendiosa indulgência num menu de intenções sérias. Ótimas, mas caras para a quantidade apresentada!

As sobremesas não são meros epílogos, mas conclusões necessárias e obrigatórias, demonstrando que recebem a mesma atenção que os pratos principais. A torta de citrinos com gelado de camomila e mel é uma equação equilibrada entre acidez e doçura, com elementos bem estruturados que conjugam sofisticação e conforto, numa aparente reinterpretação da combinação clássica de laranja, azeite e mel.
O sorvete de framboesa com mirtilos em diferentes preparações e manjericão roxo revelou-se muito mais do que o esperado; fresco, leve, doce e ácido quanto baste, num final à minha medida, que encerrou a refeição com chave de ouro. Houve ainda tempo para umas delicadas queijadas de Évora (comia uma dúzia se pudesse)!

A Humanidade do Serviço
O serviço merece capítulo próprio. Não foi apenas eficiente, numa noite de serviço calmo, foi humano. A equipa move-se com propósito e calor, antecipando necessidades e propondo soluções. Algo visível sobretudo quando nos sentamos com uma criança à mesa, à qual deram uma atenção que foi além do protocolo – genuína, quase familiar. Num mundo em que muitos restaurantes se esquecem de que hospitalidade não é sobre servir pessoas ou paladares, a equipa do Cavalariça lembrou-nos porque saímos de casa para jantar.

Considerações Finais
O Cavalariça Évora não é apenas mais um restaurante em Évora. É onde o Alentejo, com toda a sua teimosia e sabedoria ancestral, conversa com o mundo atual sem perder o sotaque. Dali saímos para a noite estrelada de Évora com a sensação de termos participado, não numa celebração palaciana, mas numa demonstração de infindáveis possibilidades. Uma demonstração de que tradição e inovação não são adversárias.
Na noite em que escrevo este texto, descubro que Bruno Caseiro, um dos arquitetos por trás do Cavalariça, está de partida. São assim as histórias da gastronomia – efémeras como um prato que se esvazia, permanentes como o sabor que fica na memória. O reconhecimento do Guia Michelin Portugal chega nesta interseção de tempos, como um testemunho do caminho percorrido.
Agora, com Catalina Viveros a voar a solo à frente das cozinhas, o Cavalariça enfrenta o desafio que é sempre o mais difícil no mundo gastronómico: a continuidade na mudança. O que desejamos é que o grupo mantenha a mesma trajetória de singularidade e autenticidade que atingiu com Bruno ao leme – essa capacidade rara de honrar a tradição sem se tornar refém dela, de dialogar com o mundo sem perder o sotaque alentejano, de criar pratos que são simultaneamente íntimos e surpreendentes.
Preços a partir de 45€ (sem vinhos)
Palácio dos Duques de Cadaval,
Rua Augusto Filipe Simões, 9 – Évora