Passaram-se vários anos desde que visitamos Istambul pela última vez (ver), desde aí muita coisa mudou na cidade e o Neolokal não foi excepção. O talento de Maksut Askar quebrou fronteiras, fez correr tinta na imprensa internacional, valeu-lhe um lugar de destaque entre as descobertas do 50Best e incluiu até uma rápida passagem por Lisboa para um jantar a 4 mãos com o Pedro Pena Bastos no extinto Ceia.
Com memórias bem presentes da sua cozinha e da forma como havia desdobrado e modernizado a tradição culinária da Anatólia, um regresso ao Neolokal era uma condição inequívoca numa nova passagem pela cidade turca.
E em boa hora o fizemos!
A sala do Neolokal continua de um encanto muito especial, mantendo a sua traça e carisma bem cosmopolita, podia estar em Londres ou Nova Iorque, podia! Mas é ali no bairro de Galata com uma vista estonteante sobre Sultanahmet que tudo faz sentido!
Chegando a carta, percebemos rapidamente que tudo evoluiu e que nenhum detalhe é deixado ao acaso, uma carta de boas vindas, o menu, uma explicação sobre a origem e construção de cada prato e um guia sobre as castas e os vinhos produzidos na Turquia – o Neolokal continua a apostar numa carta exclusivamente turca, tendo inclusivamente aberto recentemente um bar de vinhos, com destaque para os vinhos naturais e uma comida autêntica chamado – Foxy Local & Real.
O menu de degustação consiste numa partilha de pratos, dividido em várias secções de Mezze (vegetarianos, frios, quentes), pratos de peixe, carne e claro as sobremesas, ficando nas mãos do cliente a escolha do seu próprio menu, optando pelo número dos pratos e a escolha dos mesmos. Para nós a escolha foi simples, optamos por todos!
Se no passado nos havia marcado muito pela positiva, podemos concluir que o pão continua a ser um ponto forte do restaurante, agora com ainda mais carácter e personalidade, fruto dos anos de vida da massa mãe, o difícil, mesmo, é não o manter ao nosso lado ao longo de toda a refeição.
Seguindo o pão, não tardaram na mesa os pratos, servindo os 3 pratos de cada secção em simultâneo, como em qualquer mesa mais tradicional.
Dolmade de couve e Siyez
Siyez é o grão mais antigo da Anatólia, e um dos primeiros a ser domesticado pelo homem, conhecido por cá como Einkorn, e usado neste prato como bulgur, que recheia o dolmade de couve. Junta-se-lhe melaço, folhas crocantes e puré de ervas e temos um prato vegetariano que facilmente nos deixa saudades.
Vegetais de raiz
Raiz de aipo, abóbora, batata, topinambur, marmelo, cenoura são cozinhados nos seus diferentes pontos em azeite segundo a técnica tradicional zeytinyağli. Posteriormente são servidos em diferentes texturas, e à temperatura ambiente. Um prato que evidenciou a qualidade do produto e o rigor técnico.
Topik, cebola, batata, grão de bico e tahini
Um meze inspirado na influência dos emigrantes arménios em Istambul, que resulta mais uma vez numa combinação única de sabores e texturas, onde o tahini, as ervas e o óleo das mesmas, eleva o prato a outra dimensão.
Que belo trio logo para a partida inicial!
Começamos a refeição com um orange wine natural, Chamlija Kehribar Narince 2018, feito 100% com uvas Narince. A cor vibrante faz-nos lembrar laranjada , o nariz leva-nos para aromas de pêssego, alperce , demonstra na boca um carácter fresco bastante surpreendente. Um vinho que embora laranja, siga mais para um lado quase próximo de um pet nat do que uma demonstração de taninos.
Su böreği
Su böreği costuma ser uma das minhas eleições para pequeno-almoço/almoço rápido à maneira turca. Uma espécie de lasanha de massa filo, recheada com salsa e queijo feta. Aqui foram obviamente mais longe, com a combinação de camarão, óleo de ervas, massas mais crocantes e massas mais “cozidas”. Excelente!
Anchovas Marinadas
As anchovas são provavelmente o peixe mais emblemático do Bósforo, sendo a sua conserva em vinagre um clássico de todo o mediterrâneo. Aqui ganham especial destaque pela inclusão do vinagre de figo, e pickle de feijão branco fresco. Combinação irrepreensível, cheia de sabor, com uma frescura e acidez que nos faz querer continuar a comer sem parar.
Truta Fumada
Uma salada kisir, de inspiração tradicional onde o bulgur é preparado com sumo de nabo e cenoura negra fermentado. Posteriormente acompanhada por uma irrepreensível truta fumada, com notas de pinho, pickles e uma leve maionese de ervas. Mais um conjunto fresco, repleto de texturas e sabores onde mais uma vez a acidez teve um papel fundamental na eficácia do prato.
A acompanhar esteve o Hasandede 2018 da Vinkara, um vinho de notas peculiares onde se destaca o louro, o marmelo e o limão que funcionou bastante bem com as entradas frias.
Kokoreç
A versão do neolokal de um clássico da comida de rua turca, aqui preparado apenas com o coração de cordeiro em vez de uma combinação de todas as entranhas. “Simples” e repleto de especiarias que relembram a magia da cozinha turca.
Içli Köfte
Uma espécie de pastel com a massa a ser preparada com bulgur e carne e o recheio feito com carne picada e frutos secos. Mais um take pela comida de rua que aqui ganha uma outra dimensão quando conjugado com a espuma de iogurte de limão e menta e o óleo de alho e salsa. Daquelas coisas que podemos facilmente comer todos os dias e ser sempre felizes!
Erişte com Polvo
Mais uma marca da rota da seda na cozinha turca, eriste é a versão turca da pasta italiana, aqui preparada num caldo de legumes e peixe, envolvida numa espécie de pesto de tomate seco, polvo e nozes. Um prato de puro conforto!
A acompanhar esteve um Pasaeli Sidalan 2017 da região de Kaz Daglari. Um vinho com personalidade, produzido de forma orgânica e respeitando as características da casta, foram as notas herbais e apimentadas que surpreenderam no conjunto com os pratos.
Papaz Yahni
Inspirado num estufado de peixe trazido pelos Arménios para a Turquia, aqui elevado pelo ponto irrepreensível do peixe (achigã) cozinhado com elevadas notas de especiarias e pelo molho onde se destacavam as notas de azeitona e do caldo rico de peixe. Delicado e delicioso!
Mom’s Meatballs
A cozinha das mães da Anatólia é aqui recriada com um kekab onde as almôndegas são grelhadas e acompanhadas pela tradicional salada “piyaz” aqui recriada num molho. Sabor, suculência e textura que com muito prazer comemos à mão já quase no final da refeição.
Sela de cordeiro
Um prato enorme para finalizar os principais. Cordeiro no ponto, repleto de notas da mistura de especiarias com que foi marinado, acompanhado por Mihlama, uma espécie de polenta mas com muito mais riqueza e sabor, e Uveyik um tipo de grão ancestral que aqui é de certa forma tratado como um risotto bem al dente.
Para as entradas quentes o vinho escolhido foi um Chamlija Papaskarasi 2016, mais uma casta que desconhecia e um vinho que se revelou na grande surpresa da noite, com grande elegância a fazer lembrar um pinot noir mais maduro mas de grande expressividade. Muito bom!
Baklava
Baklava é motivo por si só para visitar Istambul, massa crocante, mel, pistáchio e muita, muita técnica. A versão do Neolokal estava-me na memória desta a primeira visita, muito mais leve, mas igualmente delicada e saborosa. Servida com um creme de pistáchio, frutos secos caramelizados e gelado de amêndoa. Daqueles doces difíceis de resistir!
Bolo de Maçã
Mais uma homenagem à cozinha das mães com um bolo de maçã cheio de nuances e técnica, com maçã e nozes, um crocante de bolo de cenoura, gelado de noz e um “merengue” sem claras , feito a partir da água de cozedura de uma raíz chamada çöven otu . Delicado, com todos os elementos a ligarem-se muito bem. Um doce de puro conforto.
Frigo
Dizem que nos cinemas da Turquia é normal comerem-se barras de gelados conhecidas por “Frigo”, aqui essa barra é levada a outra dimensão com notas de chá preto fumado, framboesas e diferentes texturas de pipocas, crocantes e em gelado. Um final feliz, depois de 15 momentos em que efetivamente parecia que estávamos no cinema a ver desfilar pratos e interpretações de sabores que nos são longínquos, mas que aqui ganharam uma contemporaneidade rara.
A harmonização das sobremesas fez-se com Suvla Tatli tatli karasakiz 2017 um delicado vinho de sobremesa que intriga pela sua dualidade entre aromas e sabores, se no nariz nos remetia para os frutos vermelhos mais clássicos na prova eram claramente as notas de marmelo que mais o marcavam.
Todo o serviço se desenrolou com grande profissionalismo e num bom casamento entre rigor técnico e descontração como pede o espaço e seu ambiente noctívago com destaque para o serviço de vinhos que aqui desempenha um papel essencial junto daqueles que como eu, pouco ou nada conhecem sobre o universo vínico da Turquia e das suas castas autóctones.
Considerações Finais
Na primeira vez que visitamos o Neolokal, o restaurante tinha praticamente acabado de abrir, e logo ali ficamos rendidos à cozinha de Maksut Askar, bom pão, empratamentos bonitos, muitas texturas e muito sabor com recurso a ingredientes muitas vezes completamente desconhecidos do nosso léxico. Ver a sua evolução ao longo dos anos e o bonito caminho traçado pela sua carreira tem sido um prazer enorme que culminou com uma certeza no final destes 15 pratos, ainda há muito que a Turquia e a cozinha da antiga Anatólia têm para dar à cozinha mais contemporânea. Dos ingredientes raros, às combinações de especiarias e jogos de texturas, todos temos um pouco a aprender e descobrir com o que se faz nesta cozinha e isso é motivo por si só para ser uma paragem obrigatória a cada visita à cidade.
Até breve!