Reale: A Genialidade do Minimalismo

O que acontece quando um restaurante não quer apenas alimentar, mas transformar a forma como vemos o mundo? Essa foi a pergunta que me levou ao Reale, onde cada prato é uma lição sobre a essência da comida e da vida. Aqui, a alta gastronomia não é sobre excesso, mas sobre a pureza de sabores que desafiam e emocionam.

A 160 km de Roma, por entre as bucólicas paisagens de Abruzzo, encontra-se o Reale, restaurante que carrega não só as almejadas três estrelas Michelin, ou a 19ª posição no World’s 50 Best Restaurants em 2024, como também uma filosofia própria que redefine o conceito de fine dining. 

O minimalismo na alta gastronomia não é uma novidade, mas o enigmático Niko Romito elevou-o a um patamar quase filosófico. Enquanto existem chefs que exploram a  fermentação, a sustentabilidade, o produto enquanto estrela única do prato, Romito vai além de tudo isso: Aqui a técnica não é o fim, é o meio para uma história ser contada, desmontando cada ingrediente e extraindo-lhe a sua essência.

Niko e Cristiana escrevem no seu Reale um manifesto contra o excesso, uma prova de que a verdadeira complexidade reside na simplicidade bem executada. 

O Percurso Improvável do Chef Niko Romito

A trajetória de Niko Romito é tão peculiar quanto os pratos que cria. Natural de Abruzzo, deixou de lado uma possível carreira citadina nas financas quando o destino interveio de forma inesperada: com a doença e, posterior, falecimento do pai, Niko e a sua irmã Cristiana viram-se obrigados a assumir o restaurante familiar – um espaço modesto que, na época, funcionava como uma confeitaria-trattoria.

Niko não seguiu o caminho tradicional. Sem formação culinária, mas com uma paixão inata pelos sabores de Abruzzo, ele embarcou numa jornada autodidata que transformou não apenas a sua vida, mas também a essência do Reale. Cada prato que cria é um reflexo dessa busca incessante pela autenticidade. Entre tropeços e descobertas, o chef mergulhou de cabeça num processo de pesquisa incessante, experimentando técnicas inovadoras e desafiando a tradição para extrair o máximo de cada ingrediente. Foi esse labor, aliado a uma determinação quase mítica, que lhe permitiu reinventar a cozinha de forma surpreendente, elevando a arte do minimalismo e da pureza dos sabores a um patamar quase transcendente.

Em 2007, apenas sete anos após assumir o restaurante, Niko Romito viu o Reale conquistar a sua primeira estrela Michelin; dois anos depois, a excelência foi novamente reconhecida, culminando, em 2013, com a tão cobiçada terceira estrela. Mas o percurso do chef vai muito além do reconhecimento em guias e rankings: trata-se de uma verdadeira filosofia, onde cada prato é fruto de um processo meticuloso de “verticalidade” – explorar as múltiplas facetas de um mesmo ingrediente, desde a extração pura dos seus sucos até à transformação extrema das suas texturas, criando uma narrativa culinária coesa,  pessoal e inconfundível.

A sua visão, que alia a simplicidade aparente à complexidade escondida, transborda em cada criação e inspira quem com ele se cruza, sejam as futuras gerações de chefs que passam pela sua Academia ou os clientes que ali se deslocam propositadamente.

Um Minimalismo Intenso

Se a tendência dos restaurantes estrelados é impressionar com complexidade e exuberância, o Reale segue o caminho oposto. Um reflexo da filosofia de Niko e Cristiana que encontraram num antigo mosteiro do Sec.XV, em Castel di Sangro, o cenário perfeito para exporem o seu universo. Aqui, o minimalismo reina em absoluto. Dos quartos detalhados com peças de design marcante, ao restaurante quase despido de adereços, sendo a presença mais marcante a do território de Abruzzo. 

Abruzzo não é apenas o cenário do Reale; é a sua alma. Esta região, conhecida pelos seus produtos simples mas intensos, é a inspiração da filosofia do chef. Aqui, a conexão com a terra é palpável, e Romito aproveita ao máximo esta riqueza, transformando ingredientes humildes em obras-primas gastronómicas. A região não é apenas um pano de fundo; é um co-protagonista na narrativa do Reale. Se há algo que não lhes podemos apontar é o de não serem fiéis a si próprios! Cada detalhe em Casadonna Reale é um reflexo dessa filosofia, uma montra do luxo discreto que nos liberta do súperfluo e nos obriga a focar no que é realmente importante. 

“O verdadeiro luxo na gastronomia não está na ostentação, mas na depuração absoluta, no domínio do essencial”

A Viagem Começa

Depois de uma recepção vestida de champagne, negronis e o conforto de uma lareira centenária, visitamos a adega onde Gianni Sinesi cuida aficandamente das centenas de garrafas que têm a dificil missão de harmonizar com a cozinha de Niko. Um sommelier cuja carreira se confunde com a do próprio restaurante, num ato de dedicação à “causa”, raro de encontrar nos nossos dias, e que se reflete não só na carta como na própria proposta de harmonização. 

Cave de vinhos do restaurante reale
A cave do Reale

Já à mesa a diferenciação é bem patente, e a recepção não se faz com tarteletes ou moldes instagramáveis. A experiência começa, sim, de forma quase poética com a Infusão de Couve Toscana. Com recurso a uma técnica que evita o uso de água, as folhas são rapidamente vaporizadas, permitindo que o seu suco – enriquecido com gengibre e um toque de chili – se liberte numa intensidade quase ritualística. Aqui, a execução é tão precisa que cada gota parece ter sido destilada com a paciência de um alquimista moderno. Esta introdução não só prepara o paladar para a sequência de emoções que se seguirá, como deixa logo patente a vontade de Romito em desafiar as convenções da alta gastronomia.

taça com infusão de couve Toscana no Reale
Infusão de Couve toscana
prato com folha de bróculo do reale
Folha de Brócolo

A Folha de Bróculo é uma obra-prima de simplicidade. Cozida com precisão cirúrgica no ponto de sal, a folha desfaz-se na boca, libertando um sabor terroso que é elevado por um molho vibrante de bróculos, azeite e um toque rico de anis. É um prato que nos faz questionar: como pode algo tão simples ser tão memorável? Como pode a técnica transformar um vegetal modesto e descartável num protagonista de uma narrativa sensorial?

prato do reale de couve flor gratinata
Gratinado de Couve

A continuação da viagem apresenta-nos outro ícone do chef, o Gratinado de Couve-Flor, um prato que tem traçado a sua própria história desde 2017. A cocção da couve-flor, envolve um processo meticuloso que transforma a textura e o sabor do vegetal em dois pontos distintos, o molho glaceado e o assado. Esta dualidade – a suavidade de uma pasta e a firmeza de uma couve-flor levemente tostada – é um exemplo claro de como a técnica pode ser manipulada para esculpir sabores e texturas, deixando claro que nesta cozinha cada vegetal é tratado com um respeito reverencial.

Pão Artesanal: Um Tributo ao Passado e à Evolução

Em jeito de interlúdio de simplicidade, o pão merece um destaque sólido por si só ou não fosse este um dos temas a que Niko mais se tem agarrado no desenvolvimento dos seus projectos extra-Reale. O primeiro feito com farinhas tradicionais de Solina e Saragolla seguido de um aparentemente mais tradicional einkorn, reforça o compromisso com a autenticidade e a conexão com as raízes. Aqui, o que parece ser um mero acompanhamento, ganha status quase sagrado, remetendo-nos à tradição do pão sobre a  mesa enquanto simultaneamente se insere numa narrativa contemporânea e experimental – Sem manteiga, sem azeite, apenas o sabor delicado do pão num espetáculo a solo.

prato de beterraba com uvas e rúculano reale
Beterraba, Uva Americana e Rúcula

Ao nos aproximarmos do coração da experiência, somos presenteados com o prato de Beterraba, Uva Americana e Rúcula. A beterraba, submetida a um duplo processo de cocção – primeiro cortada ao meio e depois fatiada fina para uma passagem sobre as brasas do Josper – assim revelou camadas de sabor que se entrelaçam com a doçura surpreendente das uvas “morangueiras” (que me trouxeram memórias de infância) e a frescura picante da rúcula. Cada garfada é uma surpresa, um jogo de sabores, à primeira vista contraditório, mas que ao ser degustada, mostra a coerência de uma filosofia que abraça o paradoxo do doce e do amargo.

Truta, Louro e Amêndoa

Seguimos com a a aplicação do fumo como técnica, neste caso com a Truta, Louro e Amêndoa. Um dos pratos mais marcantes da refeição e provavelmente de todo o ano de 2024. A truta, levemente fumada e depois refrigerada antes de passar pelas brasas, tem uma textura tão delicada que parece quase crua. O molho de amêndoa, com extratos de tomilho e louro, adiciona uma camada de complexidade que nos transporta para uma cozinha rústica, mas com um toque de sofisticação moderna.

prato de língua de vaca com trufa branca no reale
Língua de Vitela com Trufa Branca, Lentilhas e Avelã

A Língua de Vitela com Trufa Branca, Lentilhas e Avelã foi, sem dúvida, um dos pontos altos da noite. A língua, cozida lentamente até alcançar uma maciez sublime, contrasta com o aveludado das avelãs, a textura das lentinhas e, claro, o perfume inebriante da trufa branca. Aqui, o jogo de texturas e sabores é um verdadeiro convite à introspecção – um desafio ao paladar, parece ter falta de sal à primeira garfada, mas a cada momento, vamos conjugando as notas no palato e no cérebro e tudo faz mais sentido dessa forma.

prato de Pasta com Couve Lombarda e Raiz-forte
Pasta com Couve Lombarda e Raiz-forte

A partir daqui, a criatividade manifestou-se ainda mais em diversos níveis. Pasta com Couve Lombarda e Raiz-forte surpreende pela complexidade oculta na simplicidade. Diferentes preparações da lombarda – um caldo obtido a partir da couve grelhada, uma versão fermentada e uma cobertura – entrelaçam-se com a massa, que se impregna no caldo ao finalizar a sua cocção. Terminando o prato com as notas picantes da raíz-forte raspada a simular o bom e habitual parmigiano. Na prova, intercalamos pasta e caldo, numa mistura de conforto e desafio dos sentidos.

Pombo com Pistáchio
Pombo com Pistáchio

O Pombo com Pistáchio é grelhado ligeiramente no josper, e a sua preparação culmina com um gel feito a partir do próprio caldo do pombo, acompanhada de uma pasta de pistáchio bem concentrada que acrescenta uma textura cremosa e inesperada. Um prato que demonstra mais uma vez o minimalismo em estado puro, como uma instalação artistica feita com intuito de nos desafiar. Carne e complementos provocadoramente irrepreensíveis!

Aipo, Azeitona, soja e Vermute

Seguimos num  passeio ainda mais audacioso pelo universo das conjugações, o Aipo, Azeitona, soja e Vermute apresenta mais uma vez o fio condutor de Niko: diversas preparações de aipo combinadas com água de azeitona negra, uma emulsão de leite de soja com azeite e um toque final de vermute. É um prato que não se contenta com o óbvio e nos obriga a repensar a relação entre os ingredientes, no meu caso de forma ainda mais intensa dado que a minha relação com o aipo não é das melhores, e que aqui tive de me render à proposta.

Raviolis de Ricota de Ovelha

Homenagem às Raízes

Na maior expressão de tradição e respeito pela identidade local, surgem sobre a mesa os Raviolis de Ricota de Ovelha numa ode à região de Abruzzo. Recheados de forma intensa e quase explosiva com ricotta de ovelha proveniente da região, mais propriamente do produtor Gregorio Rotolo, estes raviolis são delicadamente glaceados com água infusionada com hortelã e pimenta preta. É um prato que, embora simples em aparência, revela uma profundidade de sabor só atingível pela qualidade dos produtos e a mestria da execução. Delicioso!

Endívia Assada

Não menos intrigante é a Endívia Assada, previamente imersa num extrato de batata crua e, posteriormente, levada ao forno para uma transformação que a torna ao mesmo tempo terrosa, crocante e sublime, graças à sua redução intensa.

Spaghettone com Grelos e Limão

Em seguida, o Spaghettone com Grelos e Limão, um prato para memória futura que aparece como um desafio à simplicidade aparente: quatro preparações distintas de grelos, intercaladas com o toque vibrante de um pó de zest de limão torrada, revelando uma complexidade que vai além da superfície. Um hino de emoções e sensações, com o amargo vibrante que acompanha toda a refeição a atingir aqui o seu auge, conjugado com a leveza do limão culminando no que começou com uma prova dífícil e termina a desejar por mais. 

Cordeiro de Abruzzo

Terminamos o capítulo salgado desta viagem ao universo “Reale” com o Cordeiro de Abruzzo, mais uma vez ligeiramente grelhado sobre carvão, a receber uma infusão singular e adocicada de leite de ovelha, ervas e canela, sendo acompanhada com alface que foi trabalhada com um molho à base de alface e leite de ovelha. Mais uma ode à experimentação sem perder a conexão com a terra e o sentido de todo o menu, em que se destacou a sumptuosidade do pequeno cordeiro e a conjugação de doçura e acidez.

Castanha, Maçã, Merengue e Trufa Branca

Para encerrar com chave de ouro, o doce Castanha, Maçã, Merengue e Trufa Branca mostra que mesmo a sobremesa pode ser uma sinfonia de contrastes – merengues finos e crocantes, mousse de castanha, geleia e cubos de maçã, nata suavemente batida, castanhas assadas e o toque inebriante da trufa branca. Como se um Mont blanc tivesse sido reconstruído, perdido doçura e ganho o direito de se exprimir em cada elemento que o configura. Leve e essencial, para terminar da melhor forma uma já longa refeição.

E, como se não bastasse, à semelhança dos aperitivos, também os petit fours fogem ao registo internacional, e prestam homenagem à terra, ao homem e ao essencial. Queijo Pecorino da região, Dióspiro e, claro, o Panettone, sempre o Panettone de Niko Romito, para uma última impressão de tradição e ousadia.

A Maestria do Amargor 

Num mundo onde o amargor é frequentemente suavizado ou eliminado, Niko Romito abraça-o como uma assinatura distinta. Desde a infusão inicial de couve negra até ao potente spaghettone com grelos, o amargor é explorado com uma profundidade rara. Romito acredita que o amargor adiciona complexidade e profundidade, desafiando o paladar a redescobrir uma dimensão frequentemente negligenciada. Esta abordagem não só distingue o Reale, como desafia convenções enquanto influencia uma nova geração de chefs a olhar cada ingrediente em novas dimensões. 

O Serviço

Uma visita ao Reale transcende a mera degustação; é uma sinfonia cuidadosamente orquestrada onde cada elemento desempenha um papel crucial. Sob a direção de Cristiana Romito, o serviço de sala destaca-se pela sua fluidez e autenticidade. A equipa, capacitada e conhecedora, interage com os clientes de forma natural e envolvente, evitando discursos ensaiados e rígidos. Esta abordagem humanizada cria uma atmosfera acolhedora, onde o profissionalismo se alia à personalidade individual de cada membro da equipa.

Os Vinhos

Os vinhos e a sua função de harmonizar são outro pilar fundamental desta experiência. Fugindo ao convencional, as seleções de vinhos são meticulosamente escolhidas por Gianni Sinesi para complementar os pratos desafiantes de Niko Romito. Cada combinação é pensada para realçar e equilibrar os sabores, resultando numa sinergia perfeita entre comida e vinho. Por exemplo, o início com o Amaro Erbe a Mare da Mistico Speziale, repleto de notas herbais, harmonizou de forma sublime com a folha de brócolos, enquanto o Campi Flegrei Piedrosso 2010 da Contrada Salandra acompanhou magistralmente a couve-flor. Sem exibir grandes rólutos ou nenhum vinho particularmente inesquecível, estas escolhas refletem uma compreensão profunda das interações entre vinho e gastronomia, elevando a refeição enquanto conjunto.

Considerações Finais 

Há experiências que nos tiram o chão, desconstruindo certezas que carregamos à mesa. Este foi um desses momentos. Pratos que pareciam inocentes — quase despretensiosos — revelaram-se verdadeiros labirintos sensoriais: texturas perfeitamente calculadas, contrastes de sabor que brincavam com a memória e técnicas invisíveis, mas cirurgicamente precisas. Comer não é apenas um ato mecânico. É um diálogo, onde o chef fala através dos pratos e o comensal responde com olhares, memórias e sensações. Neste jantar, esse diálogo foi mais intenso do que eu imaginava; foi gastronomicamente transcendente.

Um restaurante que não se contenta com o previsível. Em vez disso, vai além do óbvio e provoca uma reflexão: será que estamos a explorar verdadeiramente a essência dos alimentos? Será que precisamos de toda a ostentação que habitualmente colocamos sobre a mesa? Poderá a técnica, de facto, elevar o simples a um patamar emocional? O Reale responde afirmativamente, convidando-nos a repensar a nossa relação com a comida, a valorizar o rigor da execução e a reconhecer que, na simplicidade, reside uma complexidade desafiante, singular e inesquecível. Cada prato, cada sabor, cada textura é uma lição sobre a essência da comida e da vida. 

Aqui vivemos a proposta de um espírito irrequieto e indómável que quer quebrar os padrões estabelecidos. Mais do que estrelas ou títulos, é esta visão quase espiritual que nos leva a percorrer as montanhas de Abruzzo para chegar a Casadonna – Isso e o pequeno almoço! O inesquecível pequeno almoço sem o qual nenhuma experiência fica completa.

Algumas refeições terminam no prato; outras continuam a ecoar na memória. Esta foi a segunda. Não só pelos sabores ousados, mas pela forma como me tirou do previsível e me colocou em curto-circuito. E, no fim, não há elogio maior do que querer regressar — não só ao lugar, mas à sensação.

Preços a partir de 150€ (sem vinhos)
Quartos a partir de 300€
Piana Santa Liberata – 67031, Castel di Sangro (AQ)
+39 0864 69382

Fotos: Flavors & Senses
Textos: João Oliveira
Versão Inglês
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