Orfali Bros: Quando Alepo Encontra o Mundo

Longe do Golfo

Maio. Dubai. O ar vibra, espesso, como se o deserto decidisse engolir o Dubai.

Jumeirah Wasl 51. Longe da suave brisa do Golfo Pérsico, longe das varandas com vista para o infinito. Aqui, o calor é directo, quase hostil – o tipo de calor que questiona todas as tuas escolhas.

Mas empurras a porta. Dentro, o ar é outro – fresco, calmo, aberto como um pátio.

E encontras o oposto do Dubai que conheces. O Orfali Bros não tem o brilho das torres nem o som do luxo, não há ouro nas paredes, não há cristais Swarovski pendurados do tecto, não há aquela exuberância decorativa que a cidade ostenta como segunda pele.

 

Há simplicidade. Há madeira clara. Há uma sala onde o tecto alto respira, onde a cozinha se abre completamente à vista de todos, onde nada tenta impressionar – excepto o que sai daquela cozinha.

O Orfali Bros assume-se, sem complexos, como bistro. E talvez por isso seja tão raro: porque é honesto.

O Paradoxo Democrático

Há restaurantes que definem o seu público. E depois há o Orfali Bros, que recusa essa lógica.

Numa mesa, alguém de calções pega num pide – a “pizza” levantina que não é pizza – enquanto noutra, vieiras de Hokkaido descansam sobre um ajoblanco perfeitamente calibrado. Ao lado, um burger de wagyu honesto e tecnicamente irrepreensível. Mais adiante, snacks meticulosos com alguns dos melhores ingredientes do mundo. Ninguém parece fora de lugar.

Pode ser o restaurante estrelado mais democrático da cidade. Talvez do mundo. Não por concessão, mas por convicção.

Os irmãos Orfali – Mohamad na cozinha principal, Wassim e Omar na pastelaria – construíram algo raro: um espaço onde o fine dining e o casual dialogam tranquilamente. Uma combinação impossível de uma pizzaria napolitana com um 3 estrelas nórdico, um cocktail bar de classe mundial, um bistro moderno e uma pastelaria francesa – tudo envolvido pela cozinha das avós sírias e servido sem artifícios.

A equipa move-se com o ritmo de um bistro  – informal, atenta, simpática – mas com o conhecimento detalhado que só encontras nas salas estreladas. Sabem explicar cada fermentação, cada especiaria, cada escolha. E fazem-no sem solenidade. Apenas com a naturalidade de quem acredita no que serve.

O Manifesto Sem Álcool

Aqui está uma das ironias mais elegantes do Dubai gastronómico: o Orfali Bros não tem licença para vender bebidas alcoólicas.

A resposta? Construir um programa de bebidas que faria muitos bares premiados corar de inveja.

Infusões, kombuchas, Tepaches, mocktails de complexidade desconcertante – tudo pensado ao detalhe, com a mesma seriedade (ou talvez mais ainda) que outros restaurantes dedicam à escolha criteriosa dos seus vinhos. Há camadas, há acidez controlada, há fermentação, há especiarias, tudo em harmonia com os pratos, escolhidos com a mesma obsessão de um sommelier a escolher um Premier Cru.

Não é uma solução provisória. É uma declaração de princípios. E funciona – porque aqui não se sente falta do vinho. Há algo mais a acontecer.

foie gras
Ohh la la

O Começo: Entre Luxo e Memória

A refeição começa com espumante. Não o nosso querido vinho, mas sim uma bebida à base de uvas fermentadas servida com recurso a um sifão. Bolhas sem álcool. É leve, fresco, irreverente – como o próprio espírito da casa.

E depois, de forma rica, o Oohh La La, que é como quem diz o Foie gras.

Um snack que tem tanto de guloso como de estético. O foie gras surge coberto, trabalhado, reinterpretado. O vinagre de marmelo e as nuances do miso de avelã elevam o momento.

Não é francês. Não é árabe. É ambos, e nenhum. É o primeiro aviso: este “bistro” sabe jogar numa liga distinta.

milho
Tostada de milho

Texturas, Camadas, Sabor

Segue-se a tostada de milho.

Equilíbrio entre salgado e doçura, com as várias texturas de milho – incluindo huitlacoche (a “trufa mexicana”, o fungo do milho) que lhe traz notas de umami – a serem bem contrastadas pelo queijo parmigiano de 36 meses. Há cremosidade, há crocância, há umami profundo. Um México intelectualizado por uma mente síria.

Croqueta de aipo

Chega então uma croqueta inspirada no bolo de bacalhau português.

Feita a partir de raiz de aipo, aqui com um sabor pouco pronunciado a aromatizar o bechamel (o que aprecio), conjugado com uma maionese de trufa. Competente, tecnicamente irrepreensível. Apenas menos memorável.

Bun, caviar, smetana

Seguiu-se o caviar bun.

Com a dose “certa” de caviar, e por certa, digo generosa, num jogo de sal, acidez e leve picância da smetana, tudo ligado por uma bola fofa de bun. Comia uma dúzia. Sem exagero: comia mesmo.

É ostentação? Talvez. Mas é uma ostentação honesta, sem arrogância. É a celebração do produto, não do preço.

Le éclair

A Bomba de Umami

Agora na mesa, o éclair.

Não é um éclair doce. É uma bomba de umami, num misto de pastelaria e alquimia. Recheado com uma emulsão de boletus e marmite (a pasta britânica de extracto de levedura), uma cobertura com glaceado de marmelo, nibs de cacau e, como estrela da companhia, uma fantástica cecina. Acompanhado de um tepache de framboesa e mel, de acidez controlada e ótima frescura.

Sabores e texturas que preenchem toda a boca como se de um prato cheio se tratasse. É pastelaria salgada no seu melhor. É ousadia que funciona.

Ajoblanco

Entre o Japão,  Andaluzia e Alepo

Bebida de base japonesa: preparada a partir de koji de cevada, amazake (a bebida doce japonesa de arroz fermentado), sudachi (o citrino japonês), wasabi e kombu. Aromática, complexa, levemente doce mas com notas salgadas do kombu.

Enquanto isso, chega o ajoblanco. De olhos fechados, o mar, a amêndoa, Andaluzia num prato.

Irrepreensível a todos os níveis. Da qualidade da vieira – neste caso de Hokkaido – servida crua, ao contraste de sabor e frescura dos restantes elementos. Destaca-se a combinação das passas de tomate com o alho negro e a frescura da lima-caviar, que explode na boca como pequenas bombas de acidez controlada.

O ajoblanco é cremoso mas leve; o mar chega através da vieira; a acidez da lima corta tudo, impedindo que a amêndoa se torne pesada. As passas de tomate trazem doçura concentrada. E o alho negro paira como sombra – presente, mas discreto. É poesia comestível. 

Ostra

Continuamos com uma ostra com molho de cor vibrante feito a partir de tomate lacto-fermentado, chili, alho, chalotas e koji.

O calor da fermentação não arde; aquece. É diferente. É controlado. A ostra é impecável, fresca, iodada. O molho não a esconde – desafia-a. E a ostra responde à altura. Acompanhada de uma bebida de cor brilhante, feita a partir de arroz negro tostado e sea buckthorn. Levemente ácida, quase medicinal – mas no bom sentido. 

Beringela, miso, makdous muhammara e tarator

Médio Oriente Transformado

Seguiu-se a beringela fumada, grelhada e marinada em miso de grão de bico.

Coberta com makdous muhammara (à base de pimentos e uma panóplia de condimentos que o tornam aditivo), tarator (o típico molho de tahini), verjus, nozes.

Uma moussaka transformada e elevada, num prato que nos remete a 100% para o Médio Oriente, as suas especiarias e contraste de sabores doces com frescura e jogo de texturas. Há fumo, há cremosidade, há acidez. Há memória das avós sírias, mas há também técnica contemporânea.

A Kombucha “verde”

Por esta altura bebia-se uma kombucha preparada com kiwi, pepino, espinafre e óleo de shiso. Super refrescante e equilibrada. Verde, vibrante, viva.

Passamos ao  Eat H – salada de bulgur, pasta de chili de Aleppo, tomate, bulgur insuflado e azeite, sobre uma folha de shiso

Mohamad serve o prato na minha mão, enquanto diz simplesmente, “Junta tudo como um taco. Vais sentir a minha terra”.

Não há técnica rebuscada aqui. Há respeito. Há generosidade. Há um gesto de ternura que dispensa talheres e traduz o nome da casa: família.

É um dos momentos que ficam.

Atum e salsa roja

Férias em Forma de Prato

Viagem a Espanha e à América Latina num atum com salsa roja.

Distintas partes de atum misturadas com os restantes elementos – tomate fermentado, funcho do mar, alho, aji rocoto (a malagueta peruana), passas de tomate, azeite, cebola – e servido com uma torrada de um delicioso pão de sourdough.

Um prato rico, perfeito num dia de calor. Sabe a férias. Sabe a verão. Sabe a mar e a sol.

O atum é intenso, rico no seu tempero. Há camadas: primeiro a acidez do tomate fermentado, depois o picante controlado do rocoto, finalmente a doçura das passas que equilibra tudo.

Vieira e caviar

Rumo ao Norte

Para continuar, a vieira nórdica.

Servida com molho de manteiga noisette feito com shio koji (a pasta japonesa de arroz fermentado). E mais uma boa dose do excelente caviar N25.

Magnífica a qualidade da vieira. A riqueza e untuosidade do molho, com o caviar a funcionar como muito mais do que um simples add-on, mas como fonte de equilíbrio.

A cocção é impecável: o centro translúcido, tépido, contrastando com a caramelização exterior. O molho de manteiga noisette traz aquele sabor aveludado e tostado; o shio koji adiciona umami e doçura fermentada.

A vieira é nórdica. A manteiga noisette, francesa. O shio koji, japonês. O conceito, universal. O resultado, Orfali.

A Kombucha preparada com fat wash de manteiga noisette é o par perfeito. 

Um comboio do Japão a Alepo

Seguiram-se os famosos dumplings libaneses  – o shish barak à la gyoza, com molho de iogurte.

Usando uma receita da mãe, transformando-a numa gyoza simultaneamente suave e crocante, com um ótimo molho de iogurte que respeita a tradição mas com a acidez calibrada para a textura da gyoza tostada

É ousado. É arriscado. Funciona porque não destrói a memória – reinterpreta-a. Não é fusão por fusão. É a rota das sedas com paragens inspiradoras, e a prova de que se pode respeitar as avós e, ao mesmo tempo, desenhar o futuro sem barreiras culturais. 

Tenho uma pequena em casa que faria uma festa com este prato – e isso diz tudo.

Kebab de Wagyu

Para terminar uma já longa viagem, um prato que aparência singela: Come With Me to Aleppo.

Um kebab de wagyu picado, creme de ginja, salsa, canela e pinhões.

Simples, saboroso e com várias dimensões, onde ganha destaque a gordura da carne e o balanço do creme de ginja – que traz doçura ácida e frutal, cortando através da riqueza do wagyu.

Não é apenas um prato. É uma homenagem ao mosaico de tradições e influências diversas que tornaram a cultura Síria tão rica e marcante. especiarias, memória, técnica, emoção. 

É pessoal. É político. É delicioso. 

A kombucha de uva e ginja é o “tinto” perfeito – há fruta, há acidez. É vinho sem ser vinho.

As sobremesas em exibição no Orfali

As sobremesas, provadas e partilhadas na tranquilidade do hotel, são um epílogo francês: camadas limpas, serenas, equilibradas.

Ambos os entremetsmanga e cereja – estavam com execução minuciosa e camadas limpas, serenas, sem excesso de cremosidade e doçura.

Manga

 É França e Médio Oriente, porque os irmãos já nos provaram ao longo de todo o almoço que não existem barreiras.

A Família, o Futuro

Mohamad Orfali combina com raridade a técnica de cozinha apurada com o showmanship natural de quem nasceu para estar no palco. Há identidade própria, há presença, há liderança. E lidera os irmãos mais jovens Wassim e Omar que lhe seguiram os passos e hoje transformam a pastelaria do Orfali Bros numa referência à parte.

Mas algo está a mudar. A abertura do Three Bros (ao lado, ainda mais casual e mais descontraído) sugere evolução natural. Talvez o lado dos burgers e das pizzas migre para lá. Talvez o Orfali Bros se transforme num espaço mais focado, mais refinado.

Cereja

Mas a alma – essa identidade informal, divertida e familiar – dificilmente desaparecerá. Porque não é algo feito com artifício. É a essência os Orfali.

Considerações Finais

O que nos diz o Orfali diz o Dubai? Que há espaço para tudo. Que a cidade não é apenas ostentação e ouro – é também emoção, técnica e identidade reinterpretada. Que a gastronomia contemporânea do Médio Oriente tem em Mohamad um dos seus rostos mais proeminentes. E que esse rosto não tem medo de dialogar com o mundo inteiro.

Mohamad Orfali

O que realmente marca é a combinação de sabores – as fermentações, as especiarias, as notas inesperadas que aparecem e transformam cada dentada num momento de descoberta. E as bebidas: o programa de kombuchas, infusões e mocktails merecia, por si só, um bar próprio no World’s 50 Best.

Foi uma refeição sem falhas. O que, num menu assim ambicioso, é raro. Impressionante pela consistência, pela maturidade, pela descontração com que tudo acontece.

Impressionante também pelo facto de, em poucos anos, três irmãos terem criado não um, mas três conceitos de sucesso: o próprio Orfali Bros, o Manao (uma estrela Michelin, cozinha de inspiração tailandesa) e agora o Three Bros.

O que vem a seguir? Difícil prever. Mas o caminho de Mohamad Orfali e dos seus irmãos será certamente risonho. Porque talento não lhes falta. Técnica, idem. E essa combinação rara de identidade forte, generosidade e ambição transborda de cada prato, de cada gesto, de cada momento vivido naquela sala.

No final, o Orfali Bros é aquilo que a gastronomia deveria sempre ser: imaginação, coesão familiar, emoção e cultura reinterpretada.

E isso, isso é algo raro, precioso. Algo que merece ser celebrado, repetido, recomendado.

Voltarei. Como se volta a casa – ou a um lugar que, mesmo sendo novo, sabe a memória.

Morada — Wasl 51, Jumeirah 1, Dubai
Reservas — +971 54 584 3105
Horários — Todos os Dias, 12h00–24h00
Preços — A partir de €50
Imperdível — Caviar Bun, Éclair, Come With Me to Aleppo, Burger e Pide, Fermentados e Bebidas não alcoólicas
Chefs — Mohamad Orfali (com os irmãos Wassim e Omar Orfali na pastelaria)
Distinções — 1 Estrela Michelin (2024) | #1 MENA’s 50 Best Restaurants (2023, 2024, 2025) | 37º  World’s 50 Best Restaurants 2025

Fotos: Flavors & senses
Textos: João Oliveira
Versão Inglês
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