Romito Sem Manifesto
Maio no Dubai é uma provocação. A cidade desacelera antes do verão ardente, e a ideia de um almoço prolongado parece um ato de rebeldia climática. Foi precisamente nesse contexto – quatro adultos e uma criança em busca de refúgio e boa comida – que nos dirigimos ao Yacht Club do Bvlgari Resort Dubai. Não procurávamos pirotecnia gastronómica ou aulas sobre técnica e origens.
Queríamos apenas isso: um almoço em família onde o mar, o produto e a simplicidade fossem os protagonistas.
E Niko Romito, sempre ele, soube exactamente o que fazer.
Do Reale ao Mar
Acompanho o trabalho de Romito há anos. Primeiro à distância, como quem tenta decifrar um código secreto, depois no Reale, onde cada prato é uma tese sobre a essência dos ingredientes. Seguiram-se outros projectos, como os da constelação Bvlgari, onde a filosofia do chef se democratiza sem se diluir.
Sei o que esperar: minimalismo cirúrgico, verticalidade obsessiva, técnica ao serviço da pureza.
Mas o Yacht Club é diferente. Aqui, numa marina artificial onde iates de milhões ancoram sob o sol do Dubai, Romito não quer desconstruir. Quer apenas celebrar o mar. Não o mar como cenário turístico, mas o mar como matéria-prima, como tradição, como memória das trattorias de pé descalço e vista sem fim.
É uma homenagem às raízes italianas, sim, mas também um exercício de contenção: se no Reale a técnica desconstrói e reconstrói, no Yacht Club ela serve para elevar o simples sem o transformar.
Teca, Couro e Conforto
O espaço não tenta esconder o que é: um clube náutico sofisticado dentro de um sumptuoso hotel de cinco estrelas. Madeiras de teca, assentos em couro creme que evocam iates Riva, guarda-corpos cromados que imitam a estrutura de um navio. Tudo remete ao universo marítimo, mas com a elegância contida que é marca da dupla Antonio Citterio e Patricia Viel, arquitectos que assinam todos os Bvlgari globalmente.
Sentamo-nos numa sala envidraçada com vista directa para a marina. Lá fora, os ancoradouros exibem iates que valem fortunas; dentro, a atmosfera é surpreendentemente relaxada. Não é o tipo de restaurante onde nos sentimos obrigados a baixar o tom de voz, mas felizmente também não é aquele onde temos de nos pôr de pé e rodopiar o guardanapo enquanto pequenos foguetes adornam as garrafas de champagne em volta da mesa.
É, na verdade, exactamente o oposto: um lugar onde se pode comer bem, conversar, descontrair, deixar que a criança explore (e sim, ofereceram-lhe um peluche da cobra Bvlgari) e desfrutar sem cerimónias.
Ficámos nas mãos do chef Andrea Gurzi, responsável pela cozinha do Yacht Club e figura constante ao longo da refeição. Apresentou pratos, explicou escolhas, ajustou porções, sempre com aquele equilíbrio raro entre profissionalismo e genuína hospitalidade. Não é fácil gerir um espaço assim: clientes exigentes, produto nobre, a pressão de servir um menu assinado por um dos chefs mais marcantes da cozinha mundial.

Credenciais do Mediterrâneo
A refeição começou como deveria começar qualquer celebração do mar: Champagne (neste caso Ruinart Blanc des Blancs) e uma selecção de antipasti para partilhar. Ostras, vieiras, lagostins, camarões tigre, lírio, e o famoso gambero rosso de Mazara del Vallo chegaram à mesa como quem apresenta credenciais. Praticamente nada cozinhado. Apenas o melhor que o Mediterrâneo tem para oferecer, disposto com elegância quase cirúrgica.

Aqui não há truques. Não há emulsões ou espumas ou géis a disfarçar imperfeições. O produto é rei, e se o produto não for impecável, não há técnica que salve. Cada elemento com pequenos apontamentos, como o molho cocktail na gambero rosso, o lírio com a sua própria maionese, o lagostim com chili e uma leve salsa até às flores de courgette fritas com recheio de ricotta e maionese de anchova.

Destaque absoluto para duas coisas: a bruschetta de flor de courgette e gamba, crocante e suculenta, vegetal e marinha. Comeria uma dúzia. E o crudo de lagostim, translúcido, frio, com aquela doçura que lhe é característica.
É assim que deveria ser sempre num restaurante de peixe e marisco que se preze: produto, homenagem e simplicidade valorizada pela execução.

Sopa, ou uma Declaração de Princípios
No Dubai, em pleno pico de temperatura, pedir sopa pode parecer loucura. Mas sou português. E um português nunca diz que não a uma sopa, especialmente quando ela traz notas de conforto e memória de casa.

A sopa de espargos, espinafres, alho-francês grelhado e limão foi exactamente isso: um abraço líquido com a frescura cítrica a compensar qualquer ideia de peso. Os espargos grelhados boiavam no caldo claro, ainda com aquele toque de fumo nas pontas. A sopa sabia a Primavera com o limão a funcionar como ponte entre o terroso dos vegetais e a leveza que se pedia para um dia quente.
E sim, houve pão. Muito pão. Focaccia crocante e grissini viciantes que desapareceram da mesa quase por osmose. Romito leva o pão a sério – basta ver os seus projectos dedicados à panificação artesanal – e isso nota-se em cada dentada.

Ravioli, Paccheri, Memória
As pastas chegaram como quem chega a casa depois de uma longa viagem.
Primeiro, ravioli de rodovalho com limão, alcaparras e ouriço-do-mar. Execução delicada, molho de manteiga que cobria os ravioli como seda amarela. Dentro o rodovalho, por cima as notas iodadas do ouriço com aquele sabor a mar concentrado que explode na boca e faz brilhar os olhos.
Nada revolucionário, mas profundamente satisfatório. Às vezes, a alta cozinha esquece-se de que o conforto também é uma forma de sofisticação.

Depois veio o paccheri de Gragnano com molho de lavagante. A pasta chegou como faço em casa nas noites boas: molho espesso o suficiente para aderir aos tubos de paccheri, mas não tanto que afogue o sabor a mar e a doçura do lavagante.
É nestes pratos, os mais tradicionais, os mais “óbvios”, que se percebe se uma cozinha tem alma ou se está apenas a seguir um receituário.
Esta tinha “mão”, tinha alma.

Mar, Pão e Scarpetta
Houve um momento, entre a pasta e o ensopado, em que me perguntei se tínhamos feito a escolha certa. Vinte minutos de espera, calor lá fora a aumentar, a criança a começar a perder o interesse pelos lápis e desenhos. O Dubai tem dezenas de opções mais rápidas, mais descontraídas, mais óbvias para um almoço em família. Mas quando o ensopado chegou, aquele caldeirão generoso de mar, percebi. Há coisas que não se apressam. Nem devem.
Um momento que merece ser destacado em letras garrafais, o ensopado de peixe e marisco. Chamam-lhe “sopa”, mas não se enganem: isto é um guisado completo, generoso, onde polvo, mexilhões, ameijoas, lagostins, camarão vermelho, salmonete, rascasso, alcaparras e azeitonas se juntam num caldo guloso que pede, não… que exige pão! E eu sou um aluno bem formado na nobre e heróica arte da Scarpetta.
Todos os produtos estavam no ponto, o molho tinha profundidade sem ser pesado, e a composição equilibrada entre peixe e marisco mostrava respeito pelos ingredientes individuais sem os transformar numa papa indistinta. Para um almoço que se queria leve antes de uma tarde de piscina e diversão, talvez não fosse a escolha mais sensata. Mas foi, sem dúvida, a mais memorável.

Leveza Cítrica
Depois de tanto marisco, tanto molho, tanto sabor concentrado, a sobremesa foi um acto de compaixão gastronómica por quem ainda tinha uma longa tarde de piscina e espreguiçadeira pela frente.
O limão – gel de limão, mousse de limão, pó de limão – foi fresco, leve e sem excessos, exactamente como se pedia. Uma limpeza cítrica para fechar o círculo sem pesar na consciência ou no estômago.
Simples? Sim. Necessário? Absolutamente.
O sommelier não foi pelo óbvio. Nada de Vermentinos turísticos ou de um Pinot Grigio, jovem e fácil.
Começámos com Aperol Spritz e Champagne Ruinart Blanc de Blancs, o clássico aperitivo italiano filtrado pelo luxo francês. Depois, nas entradas, um Filodivino 2018 de Castelli di Jesi Verdicchio Classico, vinho que conhece bem o mar e sabe combinar-se com ele como poucos, fruto da sua acidez, largura de boca e mineralidade.
Para as pastas, o sommelier sugeriu um branco Ca’ del Bosco Selva della Tesa 2019, um chardonnay com pedigree, fruto de uma vinha singular, distinto e com corpo suficiente para segurar a riqueza da pasta com lavagante.
Quando vi o vinho seguinte, temi! Um Pala Siyr 2019, com peixe e marisco? A escolha parecia temerária, quase arrogante. Mas à primeira prova, percebi: servido à temperatura exacta, a fruta escura do vinho não competia com o mar, dialogava com as azeitonas, as alcaparras, o lado mais selvagem do molho. Foi um risco calculado. Que funcionou.
Nota Final
Quando se janta no Reale, espera-se uma aula. Uma desconstrução da gastronomia, um manifesto minimalista, uma experiência que desafia e provoca. É lá que Niko Romito mostra toda a sua genialidade técnica e filosófica, onde cada prato é uma tese sobre a essência dos ingredientes.
Mas o Yacht Club não procura revolucionar a gastronomia nem desconstruir tradições.
Aqui, Romito prova que é possível manter a integridade técnica, o respeito pelo produto e a assinatura depurada sem transformar tudo numa performance intelectual.
Romito em modo nonna. Técnica de chef, alma de avó.
Ainda que, aqui e ali, o ADN de Romito se faça sentir de forma mais evidente (na pasta cozida ligeiramente além do al dente para evitar o toque farináceo, por exemplo), a experiência global é de conforto e hospitalidade.
O serviço foi extremamente amável e profissional. Ficámos à mesa quase três horas. A criança explorou, nós conversámos, rimos, comemos devagar. O tipo de almoço que já não se faz com frequência suficiente, aquele em que o tempo desacelera e a comida cumpre o seu papel mais nobre: juntar pessoas, criar memórias, alimentar mais do que o corpo. E sim, a pequena à mesa foi tratada com o respeito e a atenção que nem sempre se encontra em restaurantes de luxo.
Para drama, desconstrução e encontros que abalam os alicerces da nossa visão culinária, o destino certo é Castel di Sangro, ou inclusive o Il Ristorante, também ele no Bvlgari Hotel Dubai. Mas para relaxar, desfrutar e deixar que a comida faça o que a boa comida sempre deveria fazer – alimentar o corpo e aquecer a alma sem exigir nada em troca – o Yacht Club cumpre na perfeição.
E no final, enquanto caminhávamos de volta para o sol escaldante de Dubai, ficou a sensação reconfortante de que Niko Romito é dos poucos chefs que sabe adaptar a sua voz sem a perder. Que compreende que há momentos para desafiar e momentos para acolher.
Peixe fresco. Técnica respeitosa. Tempo à mesa sem pressas.
Não é revolucionário. É apenas raro.
E quando se tem uma criança de quatro anos que acabou de passar três horas à mesa sem birras — porque a comida era boa, o serviço foi atencioso, e ninguém a fez sentir que estava a atrapalhar — raro é exactamente o que se precisa.
Morada — Bvlgari Resort Dubai, Jumeirah Bay Island, Dubai, EAU
Reservas — +971 4 777 5433
Horários — Todos os dias, 12h30 – 00h00
Preços — A partir de €120 (sem vinhos)
Imperdível — As seleções de Antipasti, o pão, os raviolis e o ensopado de peixe e marisco
Chef — Andrea Gurzi
Chef Patrono — Nico Romito
Nos arredores — Il Ristorante – Niko Romito (fine dining no mesmo hotel – ** Michelin), Bvlgari Spa, Piscina e lounge do Yatch Club Dubai.
Dress code — Smart casual
Nota — Family-friendly, com atenção especial a crianças. Espaço envidraçado com vista marina. Ideal para almoços prolongados.

