No coração vibrante de Bangkok, entre as sinuosas curvas da icônica Yaowarat Road, no epicentro de Chinatown, existe um lugar onde o tempo, a gastronomia e uma herança familiar se entrelaçam de maneira quase mística. Falamos do restaurante Potong, cuja história começou muito antes das suas portas se abrirem em 2021. O estreito e alongado edifício sino-português do século XIX pertence à família de Pam há mais de quatro gerações; foi ali que seus antepassados, imigrantes chineses, se estabeleceram e iniciaram um negócio de produção e venda de medicação tradicional chinesa.
Esse espaço, com paredes impregnadas de memórias, sonhos e conquistas, foi transformado, após uma exaustiva e meticulosa restauração, no reduto gastronómico de Pichaya Soontornyanakij, mundialmente conhecida como “Chef Pam”. A jovem chef iniciou a sua carreira nos EUA, onde se formou no Culinary Institute of America e trabalhou durante anos ao lado de Jean-Georges Vongerichten em Nova Iorque, antes de retornar a Bangkok. Primeiramente, com projectos menos disruptivos e até mais comerciais, para depois tomar de assalto a cena gastronómica da cidade com o Potong, um nome que carrega consigo a herança do antigo negócio familiar.
Um restaurante em que além dos desafios habituais da indústria, Pam enfrenta a complexa missão de honrar a história da sua família, mantendo viva a memória das gerações passadas enquanto explora diferentes vertentes de alquimia.
Ao transpormos a entrada do Potong, somos imediatamente imersos numa atmosfera que é simultaneamente intimista e grandiosa. Os tetos altos, as luzes suaves, os materiais e texturas cuidadosamente escolhidos, a disposição cuidadosamente pensada do espaço e as suas diferentes roupagens criam um ambiente que convida à introspecção e à exploração sensorial. É um local onde a presença do tempo é palpável, mas também um espaço que exala uma promessa de inovação.
É essa inovação que Sacha, o Maître D, nos promete logo no piso de entrada, onde somos convidados a conhecer a história do edíficio enquanto observamos parte da sua história e degustamos uma kombucha eximiamente preparada como um bom cocktail.
Após as apresentações, subimos até ao último andar. Embora haja um pequeno elevador, para uma verdadeira experiência de imersão, é recomendável utilizar as estreitas escadas, onde cada detalhe dos andares pode ser apreciado. Foi neste rooftop que tive uma surpreendente reconciliação com o vinho tailandês – a minha primeira experiência em 2014 foi terrível – mas um Chardonnay 2018 da Issara Estates, criteriosamente preparado em exclusivo para o Potong deixou no ar que ainda pode haver esperança para o vinho tailandês. O vinho acompanhou os primeiros snacks: uma seleção de charcutaria chinesa, incluíndo Lop Yok, que é como quem diz barriga de porco curada, Yunnan Ham, ou o fiambre chinês e Lap Cheong, a salsicha curada mais famosa do país. Todos acompanhados de uma criação específica que o complementava, fosse ele mais doce e frutado, mais ácido ou amargo.
Já instalados no piso inferior, mergulhamos mais fundo no mundo de Pam, explorando a sua história familiar e as suas motivações gastronómicas. A experiência começou com um cartão comovente, com uma dedicatória da chef aos seus avós, seguida de uma introdução da própria à sua cozinha, uma proposta de cozinha tailandesa moderna de influência chinesa.
Com um copo de Champagne La Rogerie Heroine 2014 na mesa, fomos apresentados à Galinha Negra com Ervas e Caldo, um aperitivo rico com bom contraste de texturas e um caldo servido à parte, capaz de aquecer até os corações mais frios.
Por esta altura, era óbvio que não estavamos perante um espaço sem substância cujo único objectivo seria vender uma história ou quanto muito servir boa comida. Pam quer mais, e o título de Chef Feminina do Ano 2024 no Asia’s 50 Best é um reflexo dessa ambição. Um exemplo dessa busca é o prato “A Tale of a Banana Tree”, que além de abordar a sustentabilidade, traz uma mudança de mentalidade, tudo explicado numa história de BD.
Um trio de snacks que pretende utilizar a banana em todas as suas formas, da folha e do talo à própria banana, começando com banana com fígados de galinha, a flor com garum e o talo com amendoim, camarão e lima. Três momentos deliciosos, visualmente apelativos e repletos de sabor.
Em seguida, um dos momentos mais bonitos da noite: o Caranguejo, servido em diferentes preparações. Primeiro, a carne num daqueles caris que só os tailandeses sabem preparar e no interior do casco uma combinação de emulsão de ovas de caranguejo com geleia de pimenta preta, naquela que será por ventura a mais bonita e refinada versão de um Black Pepper Crab.
Já a harmonização, aqui ficou a cargo de um Karl Haidle Samling 2021 um vinho natural alemão feito a partir da casta Kerner, cujas notas cítricas, o sabor arrojado e a mineralidade complementaram muito bem o prato.
O prato posterior foi uma homenagem ao Pad Thai, o prato que está para a Tailândia com a Carbonara está para a Itália, e que serve de representação perfeita da cozinha thai de influência chinesa. Aqui, obviamente distinta na sua forma e a levar os nossos olhos para um lugar bem distante do habitual prato de comida de rua. Se o aspecto nos ludibriava, o sabor remetia-nos à essência do prato, elevado por ingredientes especiais como o carabineiro e o seu caldo de gosto refinado ou os noodles de arroz em forma de bandeira da Tailândia.
Para manter toda a autenticidade do momento, o prato foi harmonizado com Sato, o vinho de arroz feito a partir de arroz glutinoso.
Pam chamou o prato seguinte de“reincarnated”, uma versão de um prato que a sua mãe costumava cozinhar. Aqui uma Pantorra (morchella) envolvia uma pasta “yin yang” com gema, camarão seco e caldo de porco, trazendo o conforto da comida da avó para o primoroso universo do fine dining.
A companhia ficou a cargo de um italiano, o Montenidol Il Templare 2019, uma combinação de Vernaccia, Treviano e Malvasia que não sendo particularmente especial por si só, harmonizou muito bem com os sabores do prato.
O prato principal foi o destaque da noite (na verdade um dos melhores de toda a viagem por Bangkok): Pato, o ingrediente principal que mostrou o melhor da fusão Thai/Chinesa proposta pelo Potong. O Peito no ponto, com a carne húmida e rosada e a pele crocante fruto da seleção cuidada, da pré-cocção com vinagre e 14 dias de maturação.
Mas o prato não se limitou ao peito: cérebro assado, uma terrina feita com miúdos, perna estufada combinada com berinjela, e acompanhamentos variados elevaram a experiência ao sublime. E sim, o prato estava tão bom que pedimos uma repetição!
Um grande prato merece um vinho à altura, e a escolha recaiu num Brunello di Montalcino 2018 Poggio di Sotto, um vinho que dispensa apresentações, austero mas de taninos elegantes, repleto de fruta madura e especiarias com uma acidez que o refina e torna numa demonstração perfeita da Sangiovese.
Sobre um cubo de gelo surge uma pré-sobremesa feita a partir de salak, um fruto importante para a cultura Thai-chinesa, que serve muitas das vezes como final da refeição. Aqui, transformado numa preciosa jóia de pastelaria com contraste de texturas e equilíbrio.
Seguimos em torno do Milho com uma delicada mousse servida com gelado de leite e outras texturas em torno do milho. Equilibrada, suave e elegante para um ótimo final de refeição
Como não podia deixar de ser, os petit fours chegam em forma de homenagem aos carrinhos de doces que percorriam chinatown. Uma disposição que tinha tanto de elegante como de saborosa, mostrando que aqui a pastelaria não é colocada em segundo plano.
O serviço fluiu de forma exímia desde a porta de entrada até à despedida, conduzido por mestria por Sacha di Silvestre – nada como um italiano bem treinado na arte do serviço para tornar tudo natural e espontâneo.
Considerações Finais
Numa época em que os restaurantes, principalmente os inseridos no circuito World’s 50 Best, se focam mais na criação de um Storytelling e na venda de um conceito, entrar num restaurante em que a história e a identidade não nos soam a farsa é como uma lufada de ar fresco.
Aqui, sentimos a “Verdade” no espaço, no discurso e nas paredes. O Potong é uma extensão de Pam, enraizado naquela rua estreita de Chinatown, com um conceito gastronómico único, que não poderia existir noutro lugar. Não há espaço para modismos ou expansão para edifícios modernos, e nos dias de hoje isso é bonito de ver e sentir.
Não obstante dessa beleza mais empírica, o Potong é um dos restaurantes mais interessantes de Bangkok, demonstrando que a sua rápida ascenção não aconteceu por acaso. A combinação entre a história pessoal da chef, a preservação do espaço centenário e a ousadia da proposta culinária que traz à mesa pratos que desafiam as normas do fine dining internacional, arriscando inclusive com um “prato familiar” como elemento principal do seu menu, faz deste restaurante um destino imperdível para os amantes da alta cozinha que visitam a cidade.
E não se podem esquecer que, após a refeição, a magia continua no Opium Bar. Mas, isso é uma história para outra ocasião!
Preços a partir de 170€ (sem vinhos)
422 Vanich 1 Road, Samphanthawong – Bangkok