“Pedro Lemos há só um” poderia muito bem ser o título do texto que se segue, é verdade que o poderíamos dizer sobre muitos chefs de cozinha, mas nem tanto quando olhamos para o panorama nacional. Acompanho o trabalho de Pedro Lemos há muitos anos, muito por culpa da ousadia de ter dado o seu nome ao seu primeiro restaurante a solo, numa altura em que o fine dining era uma miragem na cidade do Porto. Pedro trouxe muito mais do que “Petiscos, vinhos e guloseimas”, conseguiu reunir toda a cidade – incluindo aquela que procurava uma restauração mais cosmopolita e trendy – à sua volta, das suas propostas arriscadas e dos seus sabores profundos.
Mudanças, lutas, altos e baixos e muita perseverança trouxeram a primeira estrela Michelin e, com ela, a estabilidade e a clientela internacional mais informada (pecou por demorada como é apanágio de nuestros hermanos), novas aventuras, novos restaurantes, empratamentos mais arrojados e até uma inovação recente na sua cozinha, os pequenos amuse bouche.
E foi com esses mesmos que depois de um pequeno compasso de espera começamos a refeição acompanhados de Murganheira Grande Reserva 2005, de notável elegância e notas de estágio complexas que o posicionam entre os bons espumantes nacionais.
Começamos então com bao de sapateira, blini de bacalhau, tartelete de pato fumado e nori e macaron de cogumelos e ovo de codorniz , todos eles esteticamente irrepreensíveis, mas com nenhum a revelar-se inesquecível, com pequenas falhas na composição fazendo com que alguns dos sabores ou texturas se perdessem.
Cavala, Alface e gengibre
Aqui o caso muda completamente de figura permitindo-nos entrar verdadeiramente em pleno na cozinha de Pedro Lemos, cada vez mais refinada e influenciada pela cozinha asiática – recordo bem um prato de atum e wasabi, onde tive provavelmente a primeira noção dessa influência – as notas frescas conjugadas com a gordura e riqueza do peixe azul fizeram deste um excelente primeiro momento.
Nota alta para o inesperado cocktail com que harmonizamos o prato à base de Porto branco, gin, mezcal e cordial de shiso que funcionou em pleno com o prato, e que servido um pouco mais gelado poderia estar em qualquer bar de palmarés internacional.
Foie gras de pato, marmelo e brioche
Este é o momento “podia comer isto durante toda a minha vida” dos menus de Pedro Lemos, um prato que o acompanha desde sempre, e que eu recordo em todas as suas versões desde o pequeno paralelepípedo com macaron, mel e pão de especiarias. Mudaram-se as formas e os acompanhamentos, apareceu o brioche acabado de cozer e nesta versão o marmelo em diferentes texturas para garantir que não falta repertório técnico. O que não muda é a mousse de foie caramelizada, repleta de sabor e de textura sedosa. Será certamente o melhor foie do país!
No copo esteve, e bem, um Barbeito Ribeiro Real Verdelho 1981, a companhia portuguesa perfeita para o foie, aqui num frasqueira de textura suave, onde os sabores de caramelo e limão e um leve fumado elevados pela deliciosa acidez se revelaram uma ótima companhia para o foie.
Enguia, kimchi, macadâmia e couves
Um prato que marca uma viragem visual e de conjugação de elementos, sabores e texturas face ao que Pedro Lemos já nos havia habituado. A enguia e o molho (delicioso) sobressaem numa grande conjugação de elementos, com notas de terra a conjugarem-se bem com sabores mais frescos e acidulados.
Gamba do Algarve, ouriço do mar e chawanmushi
Mais uma vez a cozinha francesa e japonesa ganham harmonia num prato arrebatador. Tudo irrepreensível com o chawanmushi sedoso, a gamba crua e as cabeças fritas, mas onde o destaque era, como habitualmente, o molho, minhas senhoras e meus senhores, que molho! Deviam existir frascos deste molho para trazermos para casa no final do jantar como recordação. O prato remeteu-me para um clássico de Arnaud lallement no seu Assiette Champenoise(***michelin), mas superou-o na profundidade de sabor.
A harmonizar – ou para beber – que fui eu que levei a garrafa, sem pensar ou saber o que iria comer, esteve um daqueles produtores que guardo no coração, Ramonet Saint Aubin Premier Cru “En Remilly” 2016 , o mestre de chassagne-montrachet que aqui mostra um chardonnay complexo, marcado pela boa madeira com as notas oxidativas que o caracterizam, mas ainda assim uma elegância que o permitiu flutuar bem sobre os pratos.
Tamboril, Abóbora e consomé
Mais um exemplo do novo lado estético, com mais elementos e mais detalhes técnicos e texturas, aqui com um tamboril brilhante, no seu ponto perfeito (poderia escrever um artigo sobre o sofrimento que é ver este peixe tão mal tratado nas nossas cozinhas) bem conjugado com os diferentes elementos, onde mais uma vez, o molho, ou neste caso o caldo, ganha destaque. Mais um grande prato!
Aqui arriscou-se o vinho que trouxe para o prato seguinte, um Niepoort Charme de 2016 cuja fineza e taninos delicados permitiu um acompanhamento perfeito do peixe.
Vaca, grão de bico e molho do rancho
Olhando para a descrição do prato, dificilmente imaginaria a delicadeza e elegância que se seguiria, vaca em diferentes texturas, incluindo uma pasta próxima do tortellini, grão, emulsões e outros elementos, que resultam numa bomba de sabor que é difícil parar de comer. Uma espécie de mandamento de Pedro Lemos a dizer aos seus colegas que não é preciso wagyu nem lombo de vaca velha das montanhas para criar um prato de carne perfeito.
Ananás, moscatel e citronela
Para primeira sobremesa a frescura do ananás e da citronela casam com as notas doces, maduras e especiadas do moscatel. Um ótimo ponto de viragem no menu.
Chocolate, café e rum
Confesso que quando olhei para o menu, senti um certo saudosismo de uma possível versão 10.0 da “Banana, sagu e madeira” com que Pedro Lemos tantas vezes fechava o seu menu. Não sendo ele um apaixonado pela etapa doçeira, tivemos aqui dois exemplo de ótimo nível. Café na medida certa para potenciar o sabor do chocolate, aqui presente em diferentes e saborosas texturas. Simples e eficaz.
Finalizou-se a maridagem com Tawny Dow’s 40 anos, que não sendo a companhia mais óbvia para o chocolate, se posicionou muito bem ao lado das notas de café e rum, acrescentando-lhe as notas de frutos secos.
Realce ainda para o serviço, que apesar de um arranque lento, rapidamente se alinhou e seguiu a bom ritmo. É sempre difícil avaliar um serviço feito por pessoas novas num espaço com o qual temos algum histórico, correndo o risco de sermos injustos pela força do passado, mas aqui tudo correu com excelência e boa apresentação.Para finalizar sem grandes artifícios, uma madalena servia de petit four, mas não uma madalena qualquer, acabada de cozer, doce na medida certa e de barriga brilhante. Perfeita!
Menos positivo, apenas o pão, o elemento menos marcante e singular que marcou presença no menu e que num espaço com molhos como os que aqui se provaram merecia ser de qualidade superior à média.
Considerações Finais
Pedro Lemos apresenta o seu menu com a frase “Se eu sinto que não me adapto a este mundo, é porque nasci para criar o meu.” – poderíamos falar de ego e pretensiosismo, mas a verdade é que quem acompanha o seu trabalho (não vale a pena dizer que se acompanha sem se sentarem na sua mesa) sabe que Pedro Lemos raramente se expõe ou exibe o trabalho em redes sociais ou através de agências de comunicação. Para mim esse mundo que refere é um mundo contra corrente, mais clássico na sua génese gastronómica, mas simultaneamente uma lufada de ar fresco. Sim, pode parecer um paradoxo o que acabo de escrever, mas um menu com pratos que não consigo associar a outros “instagrams”, sem caviar, sem carabineiros nem wagyu (por mais que eu goste desses ingredientes) é sempre uma lufada de alegria que combate o tédio que muitas das vezes pode ser um menu de degustação.
Dizer que Pedro Lemos será por ventura o melhor saucier de Portugal, pode parecer redutor para muitos, mas para mim é motivo de prazer e orgulho num restaurante de onde saio sempre com a sensação que o visito poucas vezes, por isso sim, “Pedro Lemos há só um!”
Preços a partir de 120€ (sem vinhos)
Rua do Padre Luís Cabral, 974 – Porto