Florença é uma cidade que vive um paradoxo gastronómico fascinante: recebe mais de 16 milhões de visitantes por ano, mas quando se fala de gastronomia italiana de vanguarda ou de ícones gastronómicos, raramente surge na conversa. Enquanto Milão e Roma seduzem com a sua versatilidade gastronómica, Turim se reinventa como capital do slow food, e até a região de Nápoles conquista o mundo com bem mais que a sua pizza napoletana, Florença parece condenada a servir Bistecca eterna aos turistas que se amontoam para ver David e o Duomo.
A cidade tem mais estátuas por metro quadrado do que restaurantes com ideias próprias.
Os turistas continuam a vir por tudo que a cidade representa — um museu a céu aberto, o Uffizi, os mestres do Renascimento — mas tendem a sair de barriga cheia de clichés. Muitos deles bons, é certo. Irrepetíveis? Muito poucos.

Mas talvez seja precisamente esta ausência de pressão mediática que permite a espaços como o Il Palagio existir sem pressa, sem pose, sem a necessidade urgente de provar seja o que for. Num país onde cada região exibe as suas especialidades como quem vende peixe na praça, Paolo Lavezzini encontrou no Four Seasons Firenze a moldura perfeita para, simplesmente, sussurrar. Com a discrição aristocrática que sempre distinguiu a cidade — a mesma que escondeu Botticellis em caves durante séculos — o Il Palagio apresenta-se como uma extensão natural dessa herança e uma exepção rara no panorama gastronómico florentino: arte pela arte, não pelo aplauso.
Vegetais como manifesto
Começámos como poucos restaurantes ousam começar: com beterraba. Iniciar uma refeição com todos os snacks com beterraba como protagonista não é apenas uma ingénua escolha culinária, é quase uma declaração de independência e personalidade. Chips, aspic, canolli, tarteletes, tudo desenhado em torno de um ingrediente muitas vezes mal-amado, mas que aqui comprova o comprometimento de Paolo com os pequenos produtores e a sazonalidade dos ingredientes.

Seguiu-se um momento refrescante com Gelado de toranja, chutney, mostarda, espuma de açafrão, lemongrass e um pó que prometia eucalipto e curcuma.
Um prato que podia ter descambado facilmente, mas que se manteve elegante, com uma harmonia improvável, entre experimentação, sabor e bom senso. A companhia de um excelente Franciacorta Bellavista Vittorio Moretti 2016 funcionou como mediador diplomático entre a ousadia e a tradição, ligando com precisão o gesto criativo à herança vínica.
O pão, esse humilde revolucionário
O pão tem-se tornado um “momento”, e com ele traz toda uma mise en scène que restaurantes tendem a repetir e até por vezes a exagerar. Paolo depurou esse momento, a sua fé continua na produção da S.Forno, agora com um arrojado pão de soja e miso – porque aparentemente até o pão se pode candidatar à vanguarda sem perder a essência. E este era memorável, especialmente estando nós na Toscana. Junto dele, dois viciantes tipos de grissini (deviam ser proibidos!), o azeite extra virgem mais recente da Torre Bianca e três manteigas: clássica, de abóbora e com sálvia, que parecia feita por um perfumista em mudança de profissão.
Aqui, o vinho escolhido — o Marchesi de’ Frescobaldi Progetto Gorgona 2023 — é mais do que harmonização: é manifesto. Nascido de uma vinha cuidada por presidiários numa ilha-prisão, e, além de ser um dos brancos mais singulares da Toscana, acrescenta à mesa uma camada de reflexão social rara em experiências de luxo.

Entre mar e memória
Seguiu-se um carpaccio de vieira que chegou com rabanete, uma improvável esferificação de Negroni vintage e gelatina de spirulina. Um prato que nos fez pensar como seria um aperitivo servido numa cerimónia subaquática em Atlantis. Mas que resultou melhor do que prometia, com a doçura natural da vieira a encontrar balanço no suave amargor do cocktail e da spirulina.

A cevada com mero, molho de maracujá e rosmaninho foi como, aromaticamente, encontrar um primo brasileiro do bacalhau numa reunião de família. Traz ecos familiares, mas com sotaque tropical suficiente para nos fazer questionar se sempre soubemos o que era “casa”. O pairing com Morus Alba 2021 — um branco repleto de personalidade vindo da mágica região de Friuli que devia ser currículo obrigatório para sommeliers em formação.

Trufa, Açores e o poder da contenção
O salsifi cozinhado com pera, laranja e uma trufa negra de tamanho obsceno é um prato que se poderia perder na opulência. Mas não. Paolo já provou saber parar — e isso vale ouro na alta cozinha. Boa conjugação de notas térreas, refrescadas pelo leve toque cítrico.
Para acompanhar, chegou-nos um Ameixâmbar 2021 da Adega do Vulcão, que nos traz os Açores para o copo com uma elegância e singularidade contida — tão bela quanto a paisagem que lhe dá origem.

Seguiu-se o cevadotto com lavagante e chalotas, onde a textura cremosa do cereal acariciava o crustáceo em vez de o sufocar. Um prato mais leve que o habitual risotto, mas simultaneamente maduro, adulto e sério — como o Gevrey-Chambertin Domaine Henri Richard 2022 que o acompanhou. Um Borgonha que entra em silêncio, como uma pauta vazia, mas cresce em presença — é vinho de futuro promissor.

Conforto e sofisticação
Chegou a pasta, esse momento em que até o mais cosmopolita dos italianos volta a ser criança. Dischi Volanti com um molho obtido a partir de um ragù de salsicha e espuma de milho doce – um prato que consegue ser reconfortante e ter estética de desfile ao mesmo tempo. Comia facilmente mais meia dúzia.
O Brunello di Montalcino Tenuta Greppo 2017 da Biondi Santi veio lembrar-nos que o clássico pode ser tão disruptivo como o novo — basta fazê-lo com mestria, não com marketing. E este Biondi Santi mesmo nao sendo o Riserva, dispensa apresentações, confundindo-se o seu nome com o do próprio Brunello. Uma obra de arte.

A costela de vitela (short rib), cozinhada a baixa temperatura, trouxe a gravidade final à parte salgada. Aipo, anchovas, alcaparras, refrescam o que poderia ser um final pesado e replicam-se no molho para aumentar ainda mais esse contraste. Uma combinação improvável, diria mesmo pouco consensual, mas que aqui funciona como anticlímax necessário — um travão leve e fresco à narrativa, antes da doçura.
A escolha da harmonização recaiu sobre o Barolo Coste di Rose 2020 de G.D. Vajra, um vinho menos complexo que o anterior, mas que entrou no momento certo, com o seu elegante aroma e acidez bem vincada.
Doces sem artifícios
Depois da gravidade da costela e da leveza do Barolo, o menu vira a página — e abre espaço à doçura.

Aqui, nada de fogos de artifício, mas algumas surpresas. Primeiro, um bomboloni com whisky e café — porque às vezes a revolução é pegar numa receita da nonna, tratá-la e dissecá-la como um bom artista do renascimento.

Depois, o improvável regresso da Beterraba, com creme fraîche e kombucha de beterraba, porque aparentemente a primeira protagonista da noite recusou-se a sair de cena.
O Marsala Superiore Oro Riserva 2004 de Marco De Bartoli foi a peça que faltava: envelhecido, misterioso, com aquela confiança de quem não se oferece, insinua-se.

Seguiu-se um momento bem mais tradicional: uva, crocante de buckwheat e cacau. Leve e capaz de terminar a refeição com todas as notas necessárias.

Por fim os petit fours e o café. Este último, de qualidade rara, elaborado pela Espresso Giada’s em Pistoia, e preparado à mesa em balão de vidro. O último gesto de precisão e artesanato. Um final que não precisava de aplauso, mas teve direito a ele.
Serviço — precisão, empatia e cadência
Se os pratos comunicam com subtileza, o serviço no Il Palagio é o eco perfeito dessa linguagem. Ritmado, contido, de movimentos seguros e sorriso genuíno, a equipa de sala traduz a elegância do espaço sem lhe acrescentar peso. E fá-lo sem as coreografias forçadas que muitas vezes contaminam o fine dining contemporâneo. Há cadência, há atenção e há tempo. Tempo para respirar, para escutar, para deixar a memória trabalhar entre pratos.
No centro de tudo isto está o trabalho impecável de Walter Meccia, o sommelier que assina as harmonizações com segurança e imaginação. Um profissional que sabe escutar o prato e responder-lhe com vinho — não com ostentação, mas com inteligência, sensibilidade e propósito. O alinhamento entre cozinha e copo foi constante, e muitas vezes surpreendente, tal como já o havia mostrado no passado.
Considerações finais
Há restaurantes que visitamos por expectativa. Outros, por saudade. E depois há os que nos ensinam a voltar — não por nostalgia, mas por confiança.
O Il Palagio é mais um exemplo de que devemos fazer precisamente o contrário da velha máxima que nos diz para nunca voltarmos onde fomos felizes.
Voltámos, e encontrámos o que já conhecíamos — beterraba, mero, cevada, toranja, pasta, short rib — mas tudo com uma nova linguagem: sabores mais límpidos, texturas mais afinadas, composições mais elegantes. Um menu que respira maturidade e intenção, onde nada é gratuito e tudo parece estar mais perto do essencial.
E depois, há o serviço. Do primeiro sorriso ao café preparado diante dos nossos olhos, tudo tem cadência, precisão e empatia. Poucas coisas, num restaurante, são melhores do que um serviço que nos lê antes de nós próprios sabermos o que precisamos. E aqui, essa arte é levada a sério.
E no centro de tudo, Paolo Lavezzini — sem interesse ou preocupação em ser reconhecido como um dos grandes senhores da cozinha italiana contemporânea. Cozinha com precisão, pensa com profundidade, serve com liberdade. Sem esforço aparente, mas com um domínio absoluto da sua linguagem.
Voltaremos. Não por repetição. Mas porque sabemos — agora com absoluta certeza — que o próximo capítulo será ainda mais bonito do que o anterior.
Morada — Borgo Pinti 99 (entrada pela Via Gino Capponi 46), Hotel Four Seasons, Florença
Reservas — +39 055 262 6450
Horários — Segunda a Sábado, 19h00–22h00
Preços — A partir de €150 (vinhos não incluídos)
Imperdível — Pratos vegetais, cevadotto, dischivolanti, tagliolini de gamba vermelha
Chef — Paolo Lavezzini
Prémios — Uma estrela michelin
