A Porta Fechada
Há uma campainha. Apenas uma campainha.
No Dubai — uma cidade que anuncia tudo com letras de quinze metros e folha de ouro – Björn Frantzén escondeu o seu restaurante atrás de uma porta sem placa. Tocas. Esperas. A porta abre-se, e o deserto desaparece.
O FZN replica a filosofia do original em Estocolmo com precisão de relojoeiro: a porta fechada, os pisos que transformam o jantar numa jornada vertical, a montra de produtos onde os ingredientes repousam como jóias – num misto de desejo e expectativa.
Os cozinheiros, esses, parecem saídos de uma revista de moda escandinava: jovens, elegantes, concentrados.
Mas a verdadeira transformação acontece ao sair do elevador. Algo muda.
Atravessas o hall e, de repente, o Dubai – o ouro, o ruído, o calor que distorce o horizonte – evapora-se. Estás noutra dimensão, onde os humanos são mais eficientes e encantadores, onde cada gesto confirma que fizeste a escolha certa.
A madeira clara respira calma. A luz é pensada ao detalhe – como as texturas, as pausas, as conversas. Tudo é deliberado. Tudo é calculado. E, estranhamente, nada disso incomoda.
Recebem-nos com uma taça de Chavost Brut Nature – seco até ao osso, quase austero, o tipo de champagne que te faz sentar mais direito.
A equipa move-se com subtileza ensaiada; um teatro diário onde Torsten Vildgaard e Karin Ågren garantem que nada nem ninguém se apressa. É o tipo de serviço que não se força.

O Prólogo
O jantar começa no lounge, onde os snacks não são meros aperitivos – são avisos.
Um choux de Bourgogne crocante, ainda quente, recheado com molho Mornay e uma combinação intensa de Comté, Brillat-Savarin, Langres e Marc de Bourgogne. Depois, um taco de raiz de aipo estaladiço, recheado com tártaro de lagostim, lima-caviar, baunilha, laranja e funcho. A acidez chega primeiro, depois o estalido da casca, e por fim a lima-caviar que explode e domina tudo.
É agressivo, no melhor sentido.


Segue-se o lado asiático que tanto define Frantzén: blini de trigo-sarraceno coberto com tártaro de otoro, temperado com ponzu, flores de myoga, wasabi e pimenta sansho de Arima. Os ingredientes são japoneses, mas a intensidade de sabor não tem nada de japonesa.
O atum está fortemente temperado e termina com um travo de sansho que não arde – apenas persiste.

Surge um clássico: a interpretação de råraka, o prato sueco de batata. Base crocante, crème fraîche, sumo de limão, chalotas, cebola em pickle, cebolinho e ovas de corégono-branco. Crocante, cremoso, e com acidez a equilibrar tudo.
O champagne corta através da gordura como vento frio no nevoeiro.
Deixa-nos a acidez exacta para continuar.
Antes da transição, mostram-nos os ingredientes da noite – o ritual tantas vezes visto online.
Chega o último snack: tartelete de yuba (película de leite de soja) recheada com ricotta, espargos verdes e especiarias vadouvan.
Mais uma dentada com estalo, mais um equilíbrio perfeito.

A precisão é obsessiva.
Por esta altura, já duvidávamos dos rumores: poderiam mesmo chegar diretamente às três estrelas?
O Teatro do Real
Descemos um piso, atravessamos a cave de vinhos e chegamos à cozinha de produção.
Um chef abre uma vieira viva diante de nós. Explica, corta, extrai o músculo adutor – a parte que se come. Ainda se mexe.
É o momento em que percebemos: aqui não há ilusionismo, apenas produto, atenção e tempo.
Minutos depois, já no balcão principal, a mesma vieira regressa – agora em crudo, translúcido, doce. Temperada com alperce fermentado e colatura, coberta com finas camadas de nabo.
A textura é seda. O sabor, uma mistura de manteiga e doçura frutada, com um umami discreto.

É bonito, tecnicamente perfeito, saboroso.
Mas falta-lhe a potência dos snacks – como se alguém tivesse baixado o volume depois de uma abertura estrondosa.
Uma pausa na intensidade, que prepara o terreno para o que virá.

O Lagostim Crocante
Cauda de lagostim, parcialmente coberta com arroz koshihikari insuflado.
Ao lado, uma tigela com duas emulsões: manteiga e yuzu, e molho choron – uma béarnaise de tomate.
Noutra tigela, apenas água para limpar os dedos. (Marisqueiras, porque abandonaram este momento?)
A sala suspende-se quando o prato chega.
O lagostim está quente, acabado de fritar.
O arroz dá-lhe crosta, o molho traz memória – tomate, manteiga, algo entre marisco e ketchup picante, mas refinado, elevado, irresistível.
O molho de cocktail sobre todos os molhos cocktail.
Este é o prato de assinatura de Frantzén: simples na ideia, impossível na execução.
O Riesling Kabinett Oberhäuser Leistenberg Dönnhoff 2022 acompanha-o com elegância: açúcar residual para abraçar a doçura natural do marisco, acidez para cortar a gordura dos molhos.

Fumo e Memória
Chega o chawanmushi com caldo de carne fumado, lingueirão grelhado e ouriço do mar.
O pudim é seda pura; o fumo, uma nota que paira.
O lingueirão traz textura e o ouriço dissolve-se em tudo, como se sempre lá tivesse pertencido.
Sabe a mar, mas também a fogo. A carne, o doce, o ácido.
É desorientante — e por isso viciante.
O molho dá corpo e força; é uma combinação improvável, mas que funciona com uma lógica que transcende o raciocínio.
Voltaria todos os dias a este prato.

O Pregado com Tahini
Para que a mise en scène recaia sobre o caviar, surge o pregado — beurre blanc, nozes picadas, tahini e caviar N25.
Por cima, manteiga tostada e óleo de noz.
As nozes são o único desvio: talvez em excesso, perturbam a linha limpa entre peixe, untosidade e caviar.
Ainda assim, a cocção é impecável e a acidez do molho mantém-nos presos ao prato.
Bebeu-se o Chardonnay Chacra 2021, da Patagónia — fruto da parceria entre a família Rocchetta (Sassicaia) e Jean-Marc Roulot.
Mineral, estruturado, tenso — um vinho que fala com o molho e domina a gordura com autoridade.

Rabanada que Não o É
Onde antes se servia o abominável “limpa-palatos”, aqui chega uma rabanada.
Pão de espelta, coberto com uma emulsão de cebolinho, mexilhões grelhados, sumac, mostarda japonesa e charcutaria de lombo Angus maturado trinta dias, e finalizado com ponzu e lima.
Tudo preparado à nossa frente sob uma mistura de escrutínio e desejo.
É uma lista absurda de ingredientes, mas fundem-se sem se confundir.
Há mar, há gordura, há a crocância da torrada, há acidez que impede o prato de se tornar pesado e, claro, há aquela carne que por si só valeria um bom momento ao lado de um bom vinho.
Não é a emblemática rabanada com uma montanha de trufa preta, mas foi competente. Problemas de criar expectativas ao longo do tempo.

A Sopa de Cebola
Outra das assinaturas de Björn, que existe em todos os seus restaurantes: a interpretação da sopa de cebola.
Cebola, amêndoa e alcaçuz, num velouté de puré de cebola, com amêndoas torradas picadas, espuma de leite, creme de alcaçuz e óleo de amêndoa. O que domina são as cebolas caramelizadas e as amêndoas crocantes, num jogo sedutor de doçura e textura. O alcaçuz? Felizmente aparece ligeiramente num creme e num pó, onde pouco ou nada se faz sentir.
É um prato salgado que me deixaria feliz como sobremesa, e por isso harmoniza tão bem com o Madeira Barbeito 5 anos que o acompanhou. Um Madeira jovem, com acidez vibrante e notas de caramelo que ecoam as cebolas. Funcionou – embora um Madeira mais velho, com mais complexidade, tivesse elevado ainda mais o momento.

Porque não vemos mais pintada nos menus?
Enquanto o fine dining insiste no pombo e no pato, aqui a ave é outra.
Tendências futuras? Assim espero.
A pintada foi grelhada inteira; no prato, o peito com espargos brancos, alho selvagem e morels recheados com o farce da própria carne.
Molho périgourdine (trufa), menta e flores de pepino completam a moldura.
O peito está firme, húmido mas quase rústico – provavelmente propositado. O molho traz, mais uma vez, acidez e umami. Os morels são irresistíveis: ácidos por fora, recheados com uma mousse bem temperada. A acidez é forte, e por esta fase isso agradece-se. O prato precisa dela para não se tornar pesado ou monótono.

A acompanhar o último momento salgado, o famoso parker house roll de Frantzén – o pão que meio mundo insiste em copiar. São pãezinhos americanos dos anos 1870, criados no Parker House Hotel em Boston, e que Frantzén adaptou com manteiga laminada: manteiga francesa com sal, manteiga de trufa e manteiga de chalotas confitadas. Servidos quentes e arejados, desaparecem em segundos.
O tinto é um Bass Phillip “Estate” 2019, Pinot Noir australiano – elegante, mas com taninos firmes e uma persistência que corta a gordura da ave sem matar o prazer. Complexo e mais estruturado que o habitual, fruto do ano – ano esse que coincidiu com a última colheita assinada pelo fundador Phillip Jones. E que despedida magnífica criou.

A Despedida
Primeiro, um marshmallow de arando semi-congelado, com óleo de abeto, groselhas pretas, vinagre balsâmico envelhecido e pó de rosa. Sabor forte a frutos vermelhos. Gelado, crocante, frutado. Difícil não gostar.
Depois, amor em forma de waffles frescos de matcha com pistácios torrados e óleo de baunilha.
Servidos com uma mistura de doce de amora-branca, matcha, brittle de pistácio, mousse de earl grey caramelizado, óleo de oolong leitoso e gelado de cenoura.
É um festival de chás e infusões, mas o resultado brilha pela crocância dos pistácios e o perfume a baunilha.
Os molhos e o gelado fundem-se numa mistura cremosa onde o acto de comer com as mãos — mergulhar o waffle no conjunto — é regressar à infância.

Para fechar, um Domaine Huet Vouvray “Le Mont” Moelleux 2022 — Chenin Blanc tardio, com notas minerais conjugadas com a doçura da fruta e do mel. A acidez mantém tudo vivo.
O Caminho Final
Regressamos ao lounge. Chá, café ou algo mais forte – são muitas as opções.
Primeiro, um prato de fruta: melão japonês e manga Miyazaki com toque de yuzu. O melão é perfeito. A manga é a melhor que já provei – doce, cremosa, quase obscena na sua perfeição.

Quando tudo parece encerrado, um sem-fim de petit fours e umas mini-madeleines de cardamomo. As madeleines são surpreendentemente leves e desaparecem sem deixar rasto.
As madeleines ficaram na memória. Deveria ter pedido uma caixa para o dia seguinte.
O Sistema
Agora, com olhar frio e distante no tempo, posso dizê-lo: o FZN não é um restaurante. É um sistema.
Tudo funciona. Tudo está cronometrado.
O serviço é excepcional, mesmo para padrões de três estrelas.
Não há invasão nem pretensiosismo; há integração, escuta activa e uma precisão técnica.
Tudo parece feito sem esforço, o que significa que foi dificílimo de conseguir.

A equipa inteira – sala e cozinha – foi recrutada de todo o mundo, incluindo Portugal, e muitos vindos dos outros restaurantes de Björn Frantzén. É uma operação global, quase militar na sua precisão.
Frantzén construiu um império sobre precisão, e Torsten Vildgaard dirige este posto avançado com a serenidade de quem domina o ofício.
A cozinha é impecável. Talvez demasiado.
Um erro aqui e ali devolve-nos à Terra – e isso também tem valor.
E agora, quase um ano depois da abertura e com as estrelas conquistadas, Vildgaard está finalmente livre para introduzir o seu próprio cunho nesta proposta já memorável.
E depois há a questão:
Merece um restaurante-réplica as mesmas estrelas que o original?
Há quem diga que não.
Que o Dubai apenas importa um génio empacotado.
Que Vildgaard executa uma partitura há muito escrita e replicada.
Que isto não é mais do que um franchising de luxo.
Discordo. Discordo completamente!
Uma semana antes do anúncio do guia Michelin, não me deixou dúvidas.
Não porque isto copiasse o original, mas porque funcionava no seu próprio contexto.
E aqui está o que muitos esquecem: Vildgaard e a sua equipa não são meros executores. São intérpretes de calibre excepcional. O paradoxo de uma “réplica original”. Se fosse assim tão simples, haveria mais Frantzéns no mundo.
O FZN que visitámos será diferente do FZN que virá.
E isso não é uma fraqueza – é uma promessa.
Considerações Finais
Há chefs que constroem pratos, e há outros que constroem mundos.
Frantzén pertence à segunda categoria.
O FZN é um microcosmo de rigor, tempo e dedicação ao detalhe.
Frantzén criou um sistema próprio e soube sobrepor o seu modelo ao ritmo dourado e alucinante do Dubai. A casa funciona com a serenidade de quem sabe o que é o verdadeiro luxo: a ausência de pressa, o som medido e certeiro das vozes, o brilho apenas onde é necessário.
Mas nem tudo é reverência.
Aqui e ali houve momentos em que alguns pratos de perfil mais subtil careciam da potência apresentada nos snacks iniciais.
O controlo é absoluto, quase excessivo – quase japonês.
Mais uma vez, a questão nunca foi se uma réplica merece as mesmas estrelas que o original.
A questão é se consegue criar o seu próprio universo, a sua própria razão de existir.
E a resposta, aqui, é clara: isto não é uma cópia. É uma tradução livre, onde queremos ver se as três estrelas bastam para o que Vildgaard poderá construir aqui – não só mais uma etapa do sucesso de Frantzén, mas o seu próprio recomeço.
O Dubai não precisava de mais um restaurante de assinatura.
Precisava de alternativa.
E o FZN oferece-a: um espaço onde o luxo é inteligente, o rigor não sufoca o prazer e tudo funciona porque alguém se preocupou com o mais ínfimo detalhe.
Sim, é caro – 2000 AED pelo menu degustação, mais 1400 a 5000 AED pelas harmonizações de vinho, dependendo do nível escolhido. É o preço de importar o melhor de um mundo inteiro para o calor das Arábias.
Mas é também o preço de uma experiência que perdura – não nos bolsos, mas algures onde as coisas realmente contam.
Morada — Atlantis The Royal, Crescent Road, Palm Jumeirah, Dubai
Reservas — +971 54 584 3105
Horários — Terça a Domingo, 17h00–01h00 | Sábado e Domingo, 12h30-16h00
Preços — A partir de €450 (vinhos não incluídos)
Imperdível — Snacks, o Serviço, o Produto, O lagostim, A Pintada, os Waffles e a Manga.
Chef Executivo — Torsten Vildgaard
Chef Patrono — Björn Frantzén
General Manager — Karin Ågren
Sommelier — Kyle Barton
Distinções — Três Estrelas Michelin (Guia Michelin Dubai 2025), 4 Toques e Restaurante do Ano 2025 para o Gault Millau Dubai, 4 Estrelas no Star Wine List