Torre de Galata
Maksut Askar é um dos mais celebrados chefes da nova geração turca. Inspirado na épica história da sua região e num amplo leque de receitas tradicionais e ingredientes (muitos deles quase esquecidos) dá à cozinha turca uma nova roupagem e uma nova vida, mais contemporânea e actual. Depois de encerrar o seu bem sucedido restaurante Sekiz Istanbul, Maksut rumou ao edíficio à Galeria SALT, no animado bairro de Galata, para abrir no último ano o seu moderno restaurante Neolokal, que como o próprio nome indica se baseia nas tradicões locais recriadas de uma nova forma.
À imagem da Galeria, que serve não só como museu, mas também como espaço para conferências, investigação e biblioteca, o restaurante, com uma bela vista sobre a zona antiga de Sultanahmet, vive de uma decoração minimalista, com ferro, luzes quentes e madeira a tornar o espaço mais acolhedor. A cozinha aberta no piso inferior transporta-nos para uma sala de teatro, onde uma equipa jovem segue à risca os detalhes de um prato sobre as ordens animadas de um líder. Há quem encontre calma e paz naquele espaço para por lá ficarem durante todo o serviço, sentados na plateia enquanto estudam.
Já bem instalados, sobre a luz baixa da sala de jantar, iniciamos a noite com uns deliciosos cocktails (Istambul é sem dúvida uma pequena meca no que a cocktails diz respeito), um Daiquiri de Romã e um rum com ananás e leite de amêndoa que serviram na perfeição para abrir as hostes.
Seguiu-se um dos pontos mais simples, mas simultaneamente mais altos do Neolokal, o pão. Quem segue os meus artigos sabe a importância que dou a este alimento e o do Neolokal foi sem dúvida um dos que mais me surpreendeu nos últimos tempos, feito à base de uma Sourdough que mantêm desde a abertura do restaurante, o pão tem uma crosta fina e bem crocante, uma bonita cor dourada e um interior macio, aromático e saboroso. A acompanhar, uma ótima pasta inspirada nas receitas da mãe de Maksut, feita à base de tomate, pimentos, nozes, tahini, sementes de papoila e azeite de salsa. Não podia pedir melhor início!
A acompanhar, um copo de Turasan, Emir de 2013, um branco da região de Capadócia, refrescante, com um corpo fino, notas cítricas e tropicais e um interessante toque salgado.
Siyez, couve, alho e salsa
Siyez é um dos grãos históricos da alimentação da Anatólia, aqui apresentado sobre a forma de bulgur, a rechear um pequeno “dolma” de couve com um leve sabor do alho cozido em leite e um molho ligeiramente mais forte, resultante da caramelização da couve. Um prato simples que, não sendo dos mais interessantes da noite, não deixa de ser uma boa junção de sabores e texturas.
çerkez ordegi – terrina de Pato, creme de noz e alho, chutney de pêssego, folhas de mostarda
Aqui quase poderíamos dizer que a França visitou a Turquia, numa excelente terrina, bom sabor e textura, muito bem combinada com o creme, que lhe confere humidade e as notas interessantes da noz, em bom contraste com as folhas mais amargas e as notas adocicadas do chutney. Um prato repleto de sabor e visualmente apelativo.
Houmus – húmus, ervas e creme de Tahini
Mais um elemento que dispensa apresentações na cozinha do Médio Oriente, o Húmus, uma pasta de grão de bico, aqui numa versão 3.0. De irrepreensível sabor, e elevado pela bem conseguida selecção de ervas da horta biológica do Neolokal, criando no conjunto elementos mais picantes, mais ácidos, uns mais amargos outros mais doces, tudo muito bem ligado com o húmus e o creme de tahini que nos dá mais uma dimensão e textura. E claro, o pão volta aqui a fazer parte das contas. Muito bom.
A acompanhar estas entradas, um vinho 100% Narince, da Vino Dessera de 2014 , uma casta turca resultante num vinho com boa acidez, um corpo médio e interessantes notas cítricas e florais. Funcionou muito bem com os pratos.
Polvo, pistáchios, batata, salicórnia e framboesa
Polvo tenro e preparado com os tentáculos em terrina, acompanhado por uma diversidade interessante de sabores. A acidez da framboesa, o sabor a mar da salicórnia, o amargo das folhas de mostarda e as notas mais terrestres do creme de batata com um leve toque cítrico e claro pela presença do pistáchio. Mais um prato irrepreensível, visualmente atraente, e com excelente jogo de texturas e sabores.
Hadoque, beterraba e butarga
O Hadoque ou eglefim é um primo do nosso bacalhau, aqui fumado segundo as tradições mais antigas de Istambul, e acompanhado com uma série de elementos que mais uma vez completaram e fizeram sobressair o ingrediente principal. O sabor fumado e ligeiramente salgado do peixe funcionou muito bem com as notas doces e de terra dos cubos de beterraba, assim como com o sabor a mar da butarga. Tudo bem unido pelo creme de taramasalata e pelo crocante de pão e rabanete. Mais um excelente prato.
A harmonizar com os dois últimos pratos uma combinação das castas narince e viognier de 2011 da Kastro Tireli, um vinho mais complexo que os anteriores, com uma bonita cor dourada e notas que vão de frutos secos a pêssego. Uma ótima escolha para os pratos em questão.
İçli Köfte, molho de iogurte, alho, menta e limão, óleo de salsa e alho
Aqui aproximamo-nos ainda mais da tradição turca, com os Köfte, numa versão desconstruída. A massa é feita à base de bulgur, com a carne magra a ser cozinhada com frutos secos e servida com um refrescante molho de iogurte com um leve sabor a menta, alho e limão. Um prato simples e bem composto, que representa muito bem a essência da cozinha turca e os seus magníficos temperos.
Para acompanhar este prato o escanção de serviço escolheu o vinho que levamos de Portugal para esta viagem, um excelente Pombal do Vesúvio 2009 da Quinta do Vesúvio. Privilégio maior, o próprio Maksut e o seu escanção vieram até à nossa mesa para brindar connosco, a este prato e ao vinho, numa bela comunhão entre a Turquia e Portugal.
“Fish of Fishermen”- Anchovas, “tarator” de nozes, cebola e taramasalata
Um prato que pretende prestar homenagem aos pescadores do bósforo (e que poderia prestar homenagem também aos pescadores Portugueses). Peixe miúdo, neste caso anchovas, fritos com uma polme bem crocante à base de sourdough, sobre um brilhante creme à base de noz, chamado Tarator (feito à base de caldo de peixe, nozes, alho, limão e azeite – é impreesionante a forma como conseguem dar voltas e voltas aos frutos secos), pickle de cebola e a taramasalata que já acompanhava o hadoque. Um prato com tanto de simples e súbtil como de impressionante. Um dos melhores da noite, com um creme e uma fritura que me vai deixar saudades da próxima vez que me dedicar a uma petinga ou uns jaquinzinhos.
Salsicha de Pato, pilaf de bulgur uveyik, cebola, alho francês e espinafres com estrela de anis
Pato confitado e prensado em forma de salsicha, com uma humidade notável acompanhado de um pilaf do grão tradicional Uveyik, cozinhado com cebola e alho francês a baixa temperatura durante sete horas até atingir uma textura semelhante à de um risotto. A ligar todos os elementos um aveludado creme de espinafres e espinafres cozidos com estrela de anis. Não esperava muito da salsicha, provavelmente por hábito e gosto de ver o pato cozinhado de outra forma, no entanto saí vencido, pela técnica apresentada, boa textura, e humidade fundamental. Nota ainda para o brilhante pilaf que podia ser uma refeição por si só.
“Katmer” e “Tirit”, creme de iogurte e tarhana, tarhana seca
A vitela cozinhada em caldo de pato, com coentros, cominhos e paprika, resultou numa carne húmida, esfiapada e cheia de sabor, à semelhaça de um bom estufado. A massa é uma espécie de mil folhas feito com gordura de pato em vez de manteiga e o iogurte com dupla fermentação temperado com tarhana traz ao prato toda uma outra dimensão de sabores. É mais um prato puramente turco, com uma roupagem moderna e preparado para agradar a desconhecidos ou aos mais céticos locais, todos os elementos estão no prato, assim como os sabores. Uma brilhante união entre a cozinha atual e a tradição.
A harmonizar, mais um vinho da região de Capadócia, um Turasan Seneler de 2012 , um blend de Boğazkere que dá estrutura e taninos vivos ao vinho e Öküzgözü que lhe confere elegância e o sabor a frutos vermelhos. Um tinto descomplicado mas interessante.
Quando muitas vezes uma refeição nos corre às mil maravilhas como esta no Neolokal, temos medo de avançar para o capítulo final, as sobremesas, tantas vezes o parente pobre das entradas e pratos principais. Felizmente não foi o caso e as 3 que provamos encheram-me as medidas.
“Pepeçura”, bolo de zerde, merengue de pistáchios
Esta sobremesa é a junção de três pratos da doçaria turca, o pepeçura, uma espécie de pudim feito à base de uva, bastante aromático e com uma textura gelatinosa. Zerde, um pudim à base de arroz e açafrão das índias aqui transformado num bolo, leve e arejado. E por fim, o pistáchio em forma de merengue e em creme para ligar todos os elementos. Todos os elementos funcionaram bem em separado e conjunto com destaque para o sabor do pudim, a crocância do merengue e a subtileza do creme de pistáchio. Uma ótima sobremesa.
Parfait de tília, creme de limão e crocante de acibadem
Uma sobremesa elegante e refrescante. Um gelado à base de tília, com um excelente curd de limão e um crumble de amêndoa baseado nas acibadem, um doce semelhante às nossas bolachas de Amêndoa. Uma sobremesa ótima, doce quanto baste e com todos os elementos necessários.
Abóbora crocante, parfait de tahini, mousse de Helva e crocante de sésamo
A última e mais surpreendente das sobremesas, a abóbora é cozinhada de uma estranha forma que a torna crocante por fora e líquida no interior, como se de um bombom se tratasse. Os restantes elementos funcionaram muito bem, em particular o parfait que transmite frescura ao prato, onde, sem dúvida, as pequenas explosões de abóbora são a atração principal.
A companhar todas as sobremesas foi servido um Symposium de 2014 à base de de moscatel de Bornova , um vinho doce suave, muito distinto do nosso Porto, moscatel ou Madeira.
O trabalho do escanção é louvável, pela qualidade com que harmonizou a refeição mas também pela sua carta de vinhos, feita à base de pequenos produtores e propostas criadas com base nas uvas autóctones da Turquia. Quanto ao vinho da Quinta do Vesúvio que nos acompanhou, espero que no final tenha servido para um ótimo brinde entre toda a equipa.
O Serviço de sala é interessante, uma vez que podemos observar o próprio Maksut ou os seus subchefes a servir os pratos e a explicar a sua história ou técnica de confeção. Um estilo descontraído e moderno que muito me agrada quando, como neste caso, o profissionalismo não é posto em causa.
Considerações Finais
O Jantar no Neolokal foi o último desta nossa viagem por Istambul, e serviu para rematar aquilo que outros já tinham deixado bem patente, Istambul é garantidamente uma das melhores cidades do mundo para se comer. Comemos cultura, história, tradição e comemos uma nova era, que apelidei de Cozinha Turca Revisitada, onde chefes jovens como Maksut aliam as suas raízes com as melhores técnicas e apresentações da actualidade. Na mesa do Neolokal sinto-me como em Paris, à mesa do criativo Septime, onde os elementos mais simples nos conseguem transmitir emoções que não esperamos, como o húmus com ervas ou as anchovas fritas com creme de noz. O espaço prende-nos e transporta-nos para uma interessante atmosfera de espetáculo íntimo onde temos o privilégio de ser interlocutores, com a comida como forma de expressão. Foi sem dúvida uma das melhores refeições que tivemos em Istambul e uma daquelas que não me sairá tão sedo da memória.
Se visitarem Istambul já sabem, este é um espaço de visita obrigatória, reservem e comam cultura, porque há muito mais do que kebabs, koftes e baklavas para descobrir.
Neolokal
SALT Galata, av. Bankalar, Karaköy Istambul
+90 212 244 00 16
info@neolokal.com
Fotos: Flavors & Senses e Seren Dal para Neolokal