Herdar uma estrela Michelin deve ser como herdar uma casa cheia de fantasmas. Não são maus, os fantasmas. Apenas assobiam constantemente “era assim que se fazia”. Rodolfo ainda ouvirá, certamente, esses sons – até porque nós, crítica ou imprensa, ainda os expandimos – Daqui a um ano, talvez já não.
O Ritz existe desde 1959 com a certeza de quem nunca precisou de mudar. Mas em 2020, no piso térreo, e em plena pandemia, abriu o CURA liderado por Pedro Pena Bastos. CURA vem de curadoria. A ideia era clara: criar um restaurante de fine dining que pertencesse tanto à cidade quanto ao hotel e que simultaneamente escolhesse ingredientes, técnicas, referências com o cuidado de quem monta uma exposição – semelhante aos painéis de Almada Negreiros que ornamentam a sala. Alguns meses depois, chegou a estrela Michelin. Uma validação rápida que há algum tempo perseguia e merecia.
Mas em fevereiro de 2025, Pena Bastos anunciou pelo Instagram que saía. Cinco anos, estrela michelin, missão cumprida, hora de fazer algo distinto. A notícia abalou Lisboa.
Perguntas sucederam-se:
o CURA sobreviveria à perda do seu criador?
A estrela resistiria?
O Four Seasons arriscaria ou jogaria pelo seguro?
A resposta foi interna. Rodolfo Lavrador, sous-chef desde sempre, assumiu o comando. Promocionado de dentro, seria uma aposta de continuidade. Um voto de confiança. Ou, na pior das hipóteses, aposta de transição controlada enquanto se procurava um nome maior.
Uma noite no CURA
Chegámos numa terça-feira de junho, quatro meses depois da mudança. Tempo insuficiente para apagar o antecessor, mas suficiente para consolidar a equipa e as ideias. Queríamos ver o que restava do passado e o que já era futuro e novidade.
A primeira impressão é de conforto sem ostentação. Quiet luxury, chamam-lhe agora.
Empurras a porta e não estás no Ritz. Sala pequena, trinta lugares no máximo, preenchida. Duplas de negócios, famílias em viagem, um casal claramente em celebração, e nós um grupo de turistas gastronómicos que misturava à mesa português, espanhol, inglês, francês e um melódico sotaque brasileiro.
Sentámo-nos. Lá fora, trânsito perpétuo; dentro, a luz natural que vai escurecendo até a iluminação artificial tomar conta da sala. O ambiente muda – fica mais íntimo, mais cosmopolita e também mais sério.
Crocante de Arroz, Trigo Sarraceno e Azeitona
Na cozinha, Rodolfo comanda com gestos firmes mas contidos. Ainda sem aquele lado de showman que o antecessor cultivou desde cedo. Rodolfo é técnico. Preciso. Quase cirúrgico nos movimentos – ou não tivesse ocupado a posição que ocupou durante anos. Ao seu lado, Marina Garcia — promovida a sous-chef na mesma altura.
Como se não bastasse a pressão de assumir um espaço premiado, ainda por cima saindo da sombra de um nome reconhecido, a cozinha aberta ocupa boa parte do espaço – não atrás de um vidro, mas ali, acessível, exposta e vulnerável, onde podemos ver cada movimento. Ali, cada movimento é escrutinado. Não por malícia, mas por curiosidade. Ver uma cozinha trabalhar bem orquestrada é mais viciante que qualquer vídeo de ASMR.
Escolhemos o menu de doze momentos, com o pairing de vinhos e simultaneamente com o pairing não alcoólico. Queríamos perceber o que andavam a fazer. E em boa hora – foi provavelmente o melhor e mais bem pensado pairing sem álcool que provei em Portugal.
Atum, noz pecan, lima caviar e coscorão
O princípio
Começamos com champagne – Pierre Gimonnet & Fils – e os primeiros snacks. O atum rabilho com noz pecan e lima caviar chegou sobre uma massa tipo coscorão. Um encontro inesperado entre produto português e o mundo. A noz pecan — ingrediente que nenhum chef português tradicional consideraria ao lado de atum — trouxe doçura tostada que amplificou a untuosidade do peixe. O caviar de lima rebentou em pequenas explosões cítricas. Funcionou.
Crocante de arroz que se partia com um estalo seco. A compor-se, trigo sarraceno e azeitonas, mas era como ouvir uma piada que já conheces. Sorris por educação, não por surpresa.
A ostra ornamentada
Ostra com citrinos e raiz forte. A raiz forte despertou o palato sem excessos, os citrinos trouxeram acidez e equilíbrio. Prato de reset — limpava o palato antes do que viria a seguir.
Encharéu, Berbigão, Pepino e Wasabi
Domínio Marítimo
Encharéu com pepino, berbigão e wasabi. Pele tostada, e um leve crocante ao passar da faca; por baixo, carne ainda húmida, translúcida no centro — aquele ponto e técnica japonesa infalível. O berbigão trouxe sal e textura, o pepino frescura verde. O wasabi, fresco, deu picância suficiente para despertar e aromatizar os sentidos. O Leche de tigre por baixo a dar acidez e unir tudo. Este foi dos momentos altos da noite.
Espargos verdes, zimbro, baldroegas e sementes de abóbora
Espargos verdes com zimbro, baldroegas e sementes de abóbora. Um prato bem feito, bonito, fresco — mas esquecível. Havia ali algo em falta – cumpriu a pausa vegetal sem deixar marca.
Irrepreensível, a bebida de espargos, espinafres e salsa que acompanhava estes momentos. Suplantando o seu parceiro vínico – M.O.B. Vinha Senna 2023.
A lula
Lula e Gulodice
Lula com feijão bago de arroz (um tipo de feijão frade mais curto), flor de sabugueiro e kombu. O feijão evocava guisados da costa, mas a flor de sabugueiro trouxe um perfume doce, quase etéreo e o kombu, umami oceânico.
A lula estava perfeita — macia mas com resistência. Guloso no melhor sentido: generoso, satisfatório, memorável. E não, aquilo que parecia caviar não o era.
Aqui sim, um dos vinhos da noite, Insula 2019 – seco, focado e ótima ácidez cítrica que equilibrou as notas umami do prato.
Moda ou Futuro?
Seguindo a moda de servir pão a meio dos menus — como se fosse um prato, não um companheiro — o CURA entregou algo notável.
Servir pão a meio do menu como se fosse um “momento” é a versão gastronómica de chamar “conteúdo” a um post no Instagram. Marketing disfarçado de criatividade. O pão não é um prato, é um companheiro, esta ideia precisa de acabar. Mas o pão do CURA era tão bom que quase perdoava a farsa.
O pão de leite podia acordar lá em casa todos os dias para o pequeno-almoço. Macio, levemente adocicado, crosta fina que quebrava ao partir. Com manteiga dos Açores (densa, amarelada, sabor a pasto atlântico) e azeite verde (herbáceo, picante, vivo), este momento funcionou como interlúdio confortante. O timing em si é questionável — por mim, chegava depois dos snacks e ficava na mesa. Pão não é momento, é ligação. Por vezes esponja, por vezes salvação.
Cherne, pimento, percebe e caviar
Da lula ao pão, do pão, de regresso ao mar. Cherne com molho de pimento, percebes e caviar. O cherne — rei das águas profundas portuguesas — cozinhado com exatidão. O molho de pimento, cremoso e levemente fumado, serviu de base terrosa; os percebes destacaram-se em textura e sabor mineral. O caviar não foi mera decoração. Há ali uma portugalidade latente que me trouxe memórias de Verão, brasas, sabores de infância.
O vinho foi uma aposta arriscada: Charme 2023 de Dirk Niepoort, jovem mas com caráter e elegância suficiente para segurar o cherne. Conjugou-se bem com o mar e as notas vegetais.
Pela descrição esperava não gostar do preparado não-alcoólico — amendoim, tremoço, wasabi e maracujá — mas foi uma revelação inesperada. Combinação improvável que funcionou perfeitamente.
O Boi Galego
Padrão português
Depois de uma sequência deliciosamente orquestrada com o peixe, chegou o boi galego com alface, cogumelos e alho selvagem. Boi galego, maturado, com textura e sabor que só raças bem tratadas conseguem — mas era precisamente aí o problema. Servido morno ao lado de uma alface fria. Apenas uma parte do prato funcionava. Onde estava a continuação do apuro estético, a memória, a surpresa?
É um fenómeno comum no fine dining português: depois de excelentes trabalhos com o peixe, a carne ficar aquém. Às vezes pela simplicidade do tratamento, outras pelo próprio corte escolhido, que nem sempre tem no fine dining o palco ideal para se mostrar. Aqui, Rodolfo jogou pelo seguro. Talvez demasiado.
Mais uma vez o pairing sem álcool – com um preparado de beterraba, hibiscos, cardamomo e cravinho de doçura equilibrada suplantou o vínico, um ainda jovem e pouco excitante Quinta do Monte D’oiro 2020.
Couve-flor e alperce
A redenção
Se a carne foi tímida, as sobremesas foram o oposto. Ananás com camomila e espumante: diferentes texturas da fruta, diferentes temperaturas, delicadeza floral e notas de espumante. Refrescante, complexo, inesperadamente sofisticado.
A verdadeira surpresa foi a couve-flor com alperce, chá preto e lavanda. Couve-flor em sobremesa. Poderia ter sido um desastre conceptual. Foi uma revelação. A couve-flor, trabalhada para revelar a sua doçura natural, transformada em gelado — delicioso, cremoso, textura impecável. O alperce trouxe acidez, fruta e a marca necessária de Verão. O chá preto deu profundidade tânica. A lavanda, usada com mão leve, ofereceu apenas um sopro aromático. Tudo aparentemente simples. Tudo muito bom.
Petit Fours: Final Em Crescendo
Os fios de ovos com amêndoa amarga, o pinheiro e pinhão, e o queijo com framboesas fecharam a refeição em registo de doçaria portuguesa reinterpretada. Os fios de ovos foram notáveis — menos doces que a versão tradicional, com a amêndoa amarga a trazer contraponto adulto. É raro encontrar petit fours que sejam mais do que estéticos gestos de cortesia. Estes foram genuinamente memoráveis.
O Pairing Não-Alcoólico: Uma Lição
Aqui reside uma das grandes surpresas da noite. O pairing não-alcoólico está entre o melhor que se pode encontrar em Portugal. Diria mesmo além-fronteiras. O soro de chá verde com nori, sudachi e pimentos foi de complexidade rara: umami vegetal, acidez cítrica, frescura herbácea, tudo em equilíbrio perfeito. A beterraba com hibiscos, cardamomo e cravinho ofereceu profundidade terrosa e especiada. E o amendoim com tremoço — combinação que só poderia ser portuguesa no espírito mas global na execução, foi simultaneamente reconfortante e surpreendente.
Este é um território mal explorado em Portugal, onde o álcool-free continua a ser tabu ou sequência apressada de sumos e kombuchas. Aqui foi tratado com seriedade. Marina Garcia tem nisto uma assinatura clara – nota-se a mão de quem cozinha, também na orquestração das bebidas.
Os Vinhos
O pairing de vinhos foi competente, com boas conjugações. O Insula 2019 dos Açores mostrou-se num excelente momento de prova, com caráter e estrutura suficientes para segurar os pratos de peixe mais robustos. Mas houve escolhas menos interessantes, como a Quinta do Monte d’Oiro Reserva 2020, muito por culpa da idade ainda jovem do vinho. Faltou-lhe o tempo e a maturidade que um pairing de um restaurante estrelado deveria procurar. Foram momentos pontuais, mas notáveis numa experiência que se quer coesa.
O Serviço
A equipa de sala é jovem mas afinada, descontraída na medida certa. A cozinha aberta exige que o chef assuma, ocasionalmente, o papel de cicerone. Rodolfo fá-lo com naturalidade, ainda sem um carisma expansivo ou um olhar radiante, mas com a confiança de quem assumiu o desafio de uma carreira.
Uma Nota Final
Transições deste calibre raramente são suaves. São vários os exemplos nacionais e internacionais que não escaparam a comparativas e heranças pesadas, do Fifty Seconds ao Chef’s Table at Brooklyn Fare. O desafio posto a Rodolfo foi alto: manter a estrela e continuar o percurso ascendente do Cura, construído por Pedro Pena Bastos. Só o peso da responsabilidade seria suficiente para abalroar meia geração Z.
Quatro meses depois de assumir a chefia, ainda se notava a influência do antecessor – na visão, na estrutura de alguns pratos, na curadoria. Mas Rodolfo começava a introduzir as suas nuances enquanto faz o que poucos conseguem: manter a casa aberta, a equipa estável e a estrela viva enquanto procura a própria voz.
Pelo que acompanhamos desde então, essa mudança, lenta e cautelosa, está cada vez mais marcada. A aposta do Four Seasons está a resultar!
O menu teve pontos altos genuínos — encharéu, lula, cherne, pão, sobremesas. O trabalho com produtores nacionais bem “curados” paga bons dividendos. O pairing não-alcoólico foi excecional. Mas também houve desequilíbrios: a carne ficou aquém, alguns pratos jogaram pelo seguro. Dores de crescimento que não invalidam a proposta.
O CURA continua um dos melhores de Lisboa. Não é perfeito, mas está em crescendo — e isso, num restaurante estrelado em transição, vale mais que a perfeição estagnada e aborrecida.
Se lhe derem tempo, Rodolfo Lavrador vai fazer do CURA algo maior do que herdou. Por agora, é um restaurante a aprender a andar sozinho. E isso não é defeito. É promessa.
Morada: R. Rodrigo da Fonseca 88, 1070-051 Lisboa (Four Seasons Hotel Ritz Lisboa)
Reservas: +351 21 381 1401
Horários: Todos os dias, 19h00–22h00
Preços: A partir de €155 (sem vinhos)
Imperdíveis: O pão, o encharéu, a lula, o cherne, as sobremesas, e ótimo pairing não-alcoólico
Chef: Rodolfo Lavrador
Sous-Chef: Marina Garcia
Distinções: 1 Estrela Michelin, 2 Sóis repsol, 50 Best Discovery
Nos arredores: Hotel Ritz, Ritz Bar
Dress code: Smart casual














