Já muito se falou e escreveu sobre O Paparico – foi até eleito Restaurante do Ano nos prémios Flavors & Senses – Os Melhores para 2014 (ver) – , um restaurante fora da órbita turística da cidade que se tornou um verdadeiro fenómeno de sucesso entre estrangeiros e locais, com uma oferta de cozinha tradicional portuguesa mais aprumada e um serviço de sala que fazia inveja à grande maioria dos restaurantes com estrela Michelin.
Pois bem, esse mesmo O Paparico mudou! Mas não se assustem, não fechou, não serve hamburgers, nem tão pouco baixou a qualidade, muito pelo contrário. Está é a dar o salto qualitativo que sempre se percebeu ser o sonho de Sérgio Cambas, o proprietário, que com a maturidade certa, o crescente interesse da cidade do Porto nos roteiros internacionais e uma melhor alavanca financeira, potenciada pelo sucesso da sua mais recente aposta, o Brasão Cervejaria, decidiu mudar e levar este já clássico da cidade para outros voos!
Mas que mudanças são essas? Perguntarão os leitores menos atentos.
São acima de tudo mudanças de posicionamento, um pouco como alguns velhos restaurantes de família que vão passando de geração em geração, moldando-se aos tempos e passando de uma cozinha tradicional até à alta cozinha, como acontece muito em França ou na vizinha Espanha, em que muitos dos principais cozinheiros de hoje foram moldando os restaurantes tradicionais que herdaram de família.
O Clássico bar de O Paparico, que em tempos serviu de berço ao fenómeno do Gin na cidade do Porto
Aqui Sérgio Cambas decidiu que não havia de esperar pela próxima geração e pôs mãos à obra, tirou a sua equipa de cozinha da zona de conforto e desafiou-os a fazer mais e melhor, sempre com o foco nos sabores da tradição portuguesa, desafiou a sala a fazer também ela mais e melhor, servindo apenas menus de degustação, apostando na mise en scène e dando ainda mais protagonismo aos vinhos, e acima de tudo desafiou-se a si próprio, quando se propôs a mudar uma fórmula de sucesso.
Mas deixemos as histórias e passemos ao que realmente interessa, a nossa experiência!
Sabendo deste novo arrojo do restaurante, lá decidimos fazer uma visita. O conceito de porta fechada mantém-se, com o toque da campainha a trazer uma recepção pronta, que nos trata pelo nome ( a revelar um estudo das reservas e um cuidado com o detalhe que muito raramente se vê fora do circuito dos grandes restaurantes), e que cordialmente nos sugere uma bebida no bar enquanto são ultimados os detalhes na mesa.
E assim começou a nossa experiência neste O Paparico v2.0, com uma conversa amena e romântica, umas folhas crocantes de farinha de arroz, água aromatizada com alecrim e limão e um brinde com o excelente espumante bairradino Wijion 100% Baga, servido num fantástico copo Riedel, que lhe fez sobressair a bolha fina e uma mousse de grande elegância.
Chegando à sala, percebe-se que diminuíram o número de mesas e que as mesmas se tornaram mais amplas, e que a iluminação também sofreu grandes alterações (ideais para aqueles que insistem em tirar fotografias da comida!!!). Já na mesa, somos recebidos com tradição e alguma modernidade, com a broa de Avintes, o pão caseiro, um excelente folar transmontano, azeitonas curtidas ao jeito das alcaparras transmontanas e a imprescindível manteiga, aqui com duas versões, manteiga de cabra e cabra com algas – deliciosas.
Enquanto nos explicam a nova carta percebemos as principais alterações, deixando de haver uma opção à carta, que antigamente contava com pratos para partilhar, surgindo apenas 3 opções de menus de degustação, 3, 4 e 6 pratos e preços entre os 65€ e os 100€ com propostas de harmonização de vinhos entre 30 e 50€ dependendo do menu escolhido.
Escolhas feitas e pratos deixados na mão da equipa (é possível criar o nosso menu com base nas propostas apresentadas, 3 entradas, 3 peixes e 3 carnes), eis que surge o primeiro amuse bouche, uma Canja de galinha, reinterpretada com um excelente caldo, o arroz ou a massa dão a vez a uma espécie de espuma, onde não faltou também a gema, e que não se lembra de batalhar pelos ovinhos da canja.. Um inicio que apela à memória e nos reconforta.
Terrina de Arouquesa e Presunto de porco preto
Seguiu-se um dos clássicos da casa, a excelente Terrina de Vitela Arouquesa com vinho do Porto, preparada ao jeito da Tangerina de Heston Blumenthal, com a textura e o sabor bem afinados e um Presunto de Porco Preto com pão crocante, bem ao jeito espanhol, servido com uma desconcertante imagem do animal! Este apontamento visual, certamente causará muita discórdia, uns amarão a ideia, outros não se sentirão confortáveis a comer enquanto cruzam o olhar com o porco. Mas se a intenção é causar impacto, tensão e até uma conversa de discórdia, a ideia está mais do que conseguida.
A harmonizar, esteve um Sousa Lopes Late Harvest 2013 da casta Petit Manseng, um dos melhores colheita tardia produzidos em solo nacional, mais propriamente em Famalicão na Adega Casa da Torre, com uma excelente cor, notas florais, pêssego e mel e uma boca de final longo e a doçura bem equilibrada pela sua acidez bem vincada. Perfeito, quer com a terrina quer com o presunto.
Para terminar os snacks – se é que se lhe pode chamar assim – seguiu-se um bom exemplo da tradição portuguesa levada a outros níveis de execução e apresentação, sem descaracterizar o sabor, uma aparentemente simples Salada de Polvo, com a salsa a ser substituída por uma excelente e refrescante emulsão de molho verde, o polvo a ser apresentado em fatias finas e a cebola em forma de quenelle cortada numa brunoise tão pequena que deixaria os senhores do Le Cordon Blue envergonhados. Delicado, simples, saboroso e familiar, onde se destaca não só a técnica como a qualidade do produto onde não falta sequer o toque do soberbo vinagre da Quinta das Bágeiras.
No copo esteve o leve e fresco Sílica branco 2013, um vinho versátil à mesa, cujo lado cítrico combinou muito bem com o polvo.
Pegando na bem tradicional feijoada de mariscos, juntou-se-lhe o rei dos camarões, um feijão de qualidade superior e técnicas mais contemporâneas. Carabineiro com a cocção afinada, em que a sua sempre preciosa cabeça deu origem a uma espécie de azeite em pó, bem acompanhado pelos excelentes feijões num conjunto refrescado pelos pequenos apontamentos de hortelã. Fosse o molho da feijoada um pouco mais apurado e seria um prato perfeito.
Para acompanhar o marisco o escanção surpreendeu-nos com uma cerveja, mas não uma cerveja qualquer, mas sim a artesanal Deus – Brut des Flandres, uma cerveja complexa que viaja entre a Bélgica, onde é produzida, e a região de Champanhe, onde é fermentada pela segunda vez e envelhecida segundo o método da região. Uma cerveja com notas de espumante, aromas complexos e sabor delicado.
Tabafeira, a Chouriça da resistência
Considerada muitas vezes sinónimo de alheira, a tabafeira era conhecida em Trás os Montes como um chouriço semelhante à alheira mas produzido para ser consumido de imediato, sem a necessidade de ir para o fumeiro. Aqui recria-se essa combinação do pão com a gordura e as carnes de coelho e perdiz, com um esparregado bem fino de espinafres, mostarda hidratada, água de cogumelos e um gel de ovo. Ingredientes bem ligados, com um bom jogo de texturas, mas sem grande graça ou sabor digno de destaque. Não sendo mau, foi o prato menos interessante desta longa refeição.
No copo esteve um dos melhores exemplos da casta Chardonnay produzidos em Portugal, o Quinta do Cidrô 2012 da Real Companhia Velha, ligeiramente mais evoluído do que esperaria, mas com a estrutura, corpo e complexidade certas para o prato.
Mais um clássico português que hoje é recriado na maioria dos restaurantes nacionais de fine dining, a Caldeirada. A d’ O Paparico leva Imperador, Pargo, Salmonete, amêijoa e mexilhões, tudo cozinhado no ponto certo, com finas lâminas de batata e um molho untuoso e cheio de sabor que nos remete para as memórias do sabor. O prato é depois elevado pela intensificação dos sabores a mar dados pelas algas e refrescado pela acidez subtil de um gel de laranja que acompanha o conjunto. O momento alto da noite!
A acompanhar esteve o não menos interessante Arinto dos Açores Sur Lies 2014 de António Maçanita, mais uma prova do grande trabalho que o Maçanita tem vindo a realizar com os vinhos dos Açores. Não se confunda o Arinto dos Açores com aquele que conhecemos no continente, esta é uma casta autóctone, cuja localização lhe transmite uma salinidade e acidez únicas, com a maturação sobre as borras a trazer maior complexidade e intensidade. Um vinho muito, muito fresco, cheio de cítrinos, e uma boca com bom corpo e untuosidade que se fundiu e limpou muito bem com o molho da caldeirada. Um vinho que quero muito provar depois de envelhecido durante uns bons anos.
Adoro mão de vaca, pézinhos de porco e todos os cortes menos nobres e gelatinosos, pelo que não resisti a pedir esta adaptação da clássica mão com grão. Carne gelatinosa e bem saborosa num preparado em jeito de terrina, bom chouriço e um caldo rico e delicado. Nota alta para a qualidade do grão apresentado, muito, muito bom!
A escolha para a harmonização recaiu sobre um Loureiro 2009 Royal Palmeira, também ele mantido em contacto com as borras, criando um loureiro elegante e complexo ainda marcado por fruta fresca e um lado fumado fruto da boa evolução em garrafa.
Comida familiar e de conforto, onde o assado de domingo é rei. Aqui com um cabrito desossado de grande qualidade, cozinhado no ponto, com ótima textura e suculência, acompanhado de legumes bem trabalhados e a batata assada, tudo isto sobre um creme feito à base de arroz de miúdos do cabrito. As avós que me perdoem mas seria ótimo que o habitual cabrito de domingo fosse sempre assim!
No copo esteve um tinto do Alentejo, Altas Quintas Reserva-do 2005, um vinho a quem os anos fizeram maravilhas, equilibrando-lhe o álcool e o estágio em madeira com uma acidez soberba, fruta escura, notas balsâmicas, especiarias e muitas ouras coisas que iam surgindo à medida que o vinho se ia abrindo no copo. Um grande vinho que completou e engrandeceu o prato.
A refeição já ia longa e bem regada quando passamos às sobremesas, começamos com um bonito “falso” morango que serviu de pré-sobremesa, servido com sorvete de morango, morango liofilizado, merengue, crumble e natas azedas. Excelente empratamento e excelente sabor.
Quando muitas vezes sabemos que as sobremesas são o calcanhar de aquiles de muitos restaurantes, somos tentados a esperar o mesmo, mas saíu-nos uma boa surpresa. Apurado sentido estético numa conjugação quase garantida. Fantástico sorvete de cacau, com uma boa “bomboca” de chocolate, e avelã com bolo de alfarroba. Prato com um bom jogo de texturas e doçura equilibrada.
A harmonizar esteve um Niepoort Lbv 2007, com o habitual perfil da casa, mais seco, mas mais bem concentrado e com notas de fruta e chocolate que funcionaram muito bem com a sobremesa.
Servido numa galinha de vidro semelhante às muitas de chocolate que na minha infância apareciam lá por casa por altura da Páscoa, o Ovo! Ou seja, uma homenagem às tradicionais sobremesas portuguesas, à base de muita gema e acúcar, aqui com os clássicos fios de ovos a servir de ninho, merengues, crumble de canela e um ovo feito à base de uma espécie de zabaglione com recurso a nitrogénio líquido. Fresca, equilibrada e bem conseguida, uma sobremesa que terá ainda muito espaço para outras versões.
A acompanhar esteve um Colheita Dalva de 1985, muito bem envelhecido, com uma excelente cor e notas de mel, frutos secos e baunilha que se tornaram uma companhia irrepreensível para uma sobremesa à base de ovos.
E porque a dieta já estava perdida, aceitamos provar ainda mais uma sobremesa, Toucinho do céu. Desta feita com o toucinho a ser concebido mais ao jeito espanhol do que ao português, com uma textura mais próxima do pudim que do nosso toucinho com amêndoa e chila. Aqui bem complementado com avelãs picadas, sorvete de limão e uma folha de avelã. Teve tanto de delicia como de pecado!
Para fechar o capitulo vínico e porque o nível de álcool também já ia alto, um Madeira Ribeiro Real Malvasia 20 anos da Barbeito, mais um grande, grande vinho, cor âmbar lindíssima, notas de madeira exótica, chocolate, caramelo que se fundiu muito bem com a sobremesa e um corpo doce e suave com um final seco, que nos faz querer continuar a beber.
Uma coisa que odeio em restaurantes de fine dining é a expressão “infusão do chef” que depois nos chega à mesa com etiqueta de uma determinada marca de chás e muita das vezes sem grande interesse ou qualidade. Pelo menos aqui a infusão é feita na casa, com recurso a hortelã e mais uns apontamentos que a memória me esconde. A acompanhar não faltou uma caixa de música, que noutro ambiente seria excessiva e demasiado forçada mas que naquela sala, com aquela decoração e naquele ambiente acaba por funcionar como um bom cofre de petit fours.
caixa de musica, que é como quem diz de petit fours
Como fui falando, o serviço de vinhos foi irrepreensível do primeiro ao último segundo, copos de 1ª linha, vinhos servidos no tempo certo e antes de cada prato, bem explicados e acima de tudo muito bem conjugados com os pratos, e sempre com opções fora da caixa.
Um serviço notável que se funde bem com o meticuloso trabalho que a equipa de sala foi realizando ao longo de todo o jantar, sob a batuta minuciosa de Sérgio Cambas.
Considerações Finais
Diz-se que a sorte protege os audazes, outros dirão que são os audazes que escrevem a sua própria sorte, o que é certo é que Sérgio Cambas tem um pouco de ambas as expressões e que este seu “novo” O Paparico merece bem que a sorte o acompanhe. De um clássico sempre seguro passou a um fine dining com poucos pontos de comparação em Portugal, por toda a experiência que oferecem desde o momento em que se toca à companhia até ao momento em que se apaga a luz da última mesa na sala. Do serviço não há muito a dizer, existem muito poucos que o façam tão bem ou melhor em Portugal, quanto à cozinha, é bonito ver uma mudança tão radical, uma saída da zona de conforto e claro, o resultado conseguido, porque a verdade é que não basta querer fazer mais e melhor, é preciso conseguir, é preciso manter o padrão e melhorar cada detalhe. Desta experiência saímos mais do que satisfeitos, com um menu bastante extenso em que uns pratos estavam uns níveis a cima de outros como seria expectável.
Agora com uma experiencia deste nível logo na fase de mudança, espero grandes coisas para o futuro desta versão 2.o d’ O Paparico. Imperdível!
O Paparico
Rua de Costa Cabral 2343, Porto
+351 225 400 548
Fotos: Flavors & Senses
Estava no meu radar para uma futura ida ao Porto e agora subiu para o cimo da lista! Excelente crónica e fotografias!
Obrigado Duarte,
Vai valer a pena! e ao que sei agora estão ainda com mais novidades..
Abraço,
João
Se já estava no topo da lista para experimentar ao jantar, agora não há qualquer tipo de desculpas. Não pode haver!
Adorei e babei com o relato da experiência. Quero vivê-la!
Obrigada! Excelente post.
Susana
Obrigado Susana,
De certeza que vai valer a pena!
João