Hiša Franko


Certamente quem lê este artigo não necessitará que comece por apresentar Ana Roš e o seu Hiša Franko depois da fama atingida pelo episódio do Chef’s Table na Netflix, o Título de Melhor Chef Feminina do Mundo e mais recentemente o pináculo das três estrelas Michelin.

Falar do Hiša Franko e da celebração dos seus 50 anos é contar uma história que tinha tudo para dar errado, uma saga sem princesas nem bruxas más, mas repleta de personagens que encarnam a perseverança e dedicação, permitindo-lhes afirmar no final: “este restaurante venceu contra todas as probabilidades.”

Primeiro, a idade; é raro encontrar restaurantes com meio século de existência que se mantenham tão relevantes e influentes na gastronomia internacional. Em segundo lugar, um restaurante liderado por uma mulher, especialmente uma autodidata sem qualquer experiência culinária antes de assumir as rédeas da cozinha. E, por fim, a localização quase inóspita, no coração do vale do Rio Soca, distante de tudo e de todos, mas próximo da essência do Hiša Franko.

No entanto, Ana soube, com firmeza e determinação, impregnar o local com um sentido de mudança, uma visão única de hospitalidade, uma abordagem peculiar à cozinha, combinações de sabores e aromas (longe de delicadezas ou subtilezas), e, sobretudo, uma certa rebeldia que permitiu a uma mulher destacar-se num mundo dominado por homens e afirmar-se num país onde a gastronomia não era, e continua a não ser, um traço distintivo.

Neste contexto, o cartão de visita da Eslovénia é a sua própria natureza exuberante: vastos campos verdes, montanhas imponentes, vales ladeados por rios de água turquesa, e, claro, a sua rica fauna e flora.

Essa leitura e as muitas viagens gastronómicas de Ana e do seu antigo parceiro e sócio, Valter, pelos melhores restaurantes do mundo, levaram-na a focar-se num farm-to-table em que brilhariam os produtos locais, do forragear nas colinas junto ao restaurante, às trutas pescadas nas águas do próprio rio Soca, passando pela caça e o leite de qualidade ímpar. Tratando pessoalmente com cada produtor ou coletor, Ana alimentou e apoiou um sistema que permitiu a todos produzir mais e melhor.

Toda a experiência começa muito antes de chegar à mesa. Ao chegar a Ljubljana (o mais comum e mais rápido será voar-se para as cidades italianas de Trieste ou Veneza),inicia-se uma jornada de aproximadamente duas horas, que inclui travessias de fronteira com Itália e algumas das estradas mais pitorescas que a Europa tem a oferecer. Todo o cenário idílico e natural começa a despertar em nós ideias e antecipações sobre o que o menu do Hiša Franko nos reservará.

Dois voos e quatro países depois, chegamos a Kobarid, uma pequena localidade marcada pela influência italiana e pelo cenário natural indescritível. É aqui que encontramos o destino, entre campos verdes, o murmúrio de um pequeno riacho movendo um moinho e as paredes cor de tijolo que despontam entre as árvores.

Ao entrar na casa, sentimos isso mesmo, um sentido de conforto quase caseiro que resulta essencialmente pela forma descontraída e calorosa com que a equipa nos recebe. Fomos acomodados na sala original do restaurante, de paredes vermelhas marcantes, agora adornada com mesas amplas e confortáveis, onde a toalha branca é mais um ponto de luminosidade e conforto que propriamente uma formalidade.

Pêssego, amendôa e calêndula
Pêssego, amendôa, ouriço e calêndula

Num restaurante sobre o qual já lemos e vimos tanto é impossível não criar expectativas, a primeira desde logo como iriam começar a refeição. Seria uma série de amuse-bouches, uma apresentação de ingredientes únicos em jeito de dissertação que normalmente incomoda mais do que beneficia? Não, Ana foge do convencional e do pré-estabelecido. Se o objectivo é viver e sentir a natureza do vale que envolve o restaurante, começamos precisamente por isso: tocar, cheirar e sentir um pouco de musgo vivo e fresco, numa introdução quase espiritual da causa que os move.

Começamos então com o Pêssego com amendôa, ouriço e calêndula numa demonstração clara das improvavéis combinações que habitam na mente de Ana e da sua equipa. Doce, salgado, marinho e fresco, num conjunto que soube despertar o palato como poucos.

Taco de Sementes
Taco de Sementes

Segue-se o belíssimo  Taco de sementes, com recheio de grão de bico, creme de sementes de girasol, sementes, notas de marmelo negro, pera e silene vulgaris. O taco é um híbrido entre o taco crocante, que vemos normalmente no fine dining, e o taco macio das ruas do México, numa combinação que evoca as viagens de Ana e provavelmente as origens latinas de vários dos seus cozinheiros, moldado pelos sabores outonais da região.

Mexilhão, algas e água de tomate fermentada
Mexilhão, algas e água de tomate fermentada

A terminar a primeira fase do menu, continuamos nas notas frescas, com um Mexilhão combinado com aipo, funcho e ervas, servido com água de tomate fermentada. Sabor, frescura e uma identidade bem herbal onde infelizmente o mexilhão, devido ao seu tamanho reduzido, perde o protagonismo.

Para abrir a noite começamos com o mais “conservador” dos vinhos provados, um champagne, Bistrotage 2017 de Charles Dufour, um Blanc des Noir, complexo, com ligeira e boa oxidação que se revelou também ele um protagonista.

Beignet de milho, queijo cotttage fermentado, ovas de truta e cebolinho
Beignet de milho, queijo cotttage fermentado, ovas de truta e cebolinho

Depois de um começo delicado, passamos ao momento dos clássicos, pedaços de história aparentemente mais simples, mas que marcam presença nos menus de Ana Roš há várias temporadas. À primeira dentada é fácil perceber o porquê do sucesso! Começamos pelo Beignet, recheado com a ricotta fermentada que tanto marca a cozinha de Ana. Herbal, fino e com ovas de ótima qualidade – poderia facilmente comer uma dúzia.

Batata, feno, creme azedo e caviar
Batata, feno, creme azedo e caviar

Para nos trazer de volta às raízes, Ana coloca uma questão “porque valorizamos mais o caviar do que uma batata?”trazendo um prato que dificilmente encontraríamos em qualquer outro restaurante com três estrelas. Uma batata cozcinhada numa crosta de feno e sal, acompanhada por creme azedo e caviar. Mas não se enganem, não se trata de uma batata qualquer; são cultivadas numa área muito peculiar, desenvolvidas até ao ponto desejado pela chef e colhidas uma a uma. Ana paga por uma pequena batata aproximadamente o mesmo que pagamos por um quilo. Um prato que traz a simplicidade e o aroma do campo, conjugando-o com uma técnica de cocção e uma delicadeza que justificaria a presença em qualquer menu, mas sim, é aqui que faz todo o sentido.

No copo seguiu-se um Kmetija Stekar Belo 2022, um branco com blend de castas bem distintas entre si que resulta num vinho fresco, salgado e bastante cítrico.

Tomatillo, feijão, framboesa rabanete, leite de amêndoa e louro
Tomatillo, feijão, framboesa rabanete, leite de amêndoa e louro

Continuamos a bom ritmo com um mergulho de frescura e complexidade vegetal no prato de tomatillos, ao qual se seguiu, no mesmo registo, a salada de de Outono, com favas e frutos do bosque que realçaram a acidez e mantiveram o menu num nível elevado, numa delicada combinação de texturas realçadas pelo creme de fermento tostado. Muito bom!

Salada de Outono - favas, frutos do bosque e creme de fermento tostado
Salada de Outono – favas, frutos do bosque e creme de fermento tostado

Por esta altura brindavamos com um excepcional orange wine Grande Waldo 2021 de Nikolas Juretic, a estrela em ascensão dos vinhos naturais na região italiana de Friuli. Herbáceo mas delicado, de sabor forte mas sem amargor, complementou perfeitamente os pratos mais frescos e delicados.

Tagliolini cortado à mão, coelho selvagem, nibs de cacau e trufa negra
Tagliolini cortado à mão, coelho selvagem, nibs de cacau e trufa negra

Chegou o momento de entrarmos na “cozinha de conforto” com pratos que revelam a influência italiana, não só na região de Kobarid mas também na vida e na cozinha de Ana. Começamos com um prato de tagliolini fresco, com um ragù de coelho selvagem que se destacou. Com sabor levemente amargo da combinação de pimentas e nibs de cacau, este prato oferece profundo gosto Umami. Revelou-se uma amostra encantadora dos sabores mais outonais e confortáveis da montanha, elevados ao patamar da alta cozinha.

No mesmo seguimento, surge na mesa um “risotto” de cevada, com avelã, feijão verde e fermento em pó. Talvez o prato mais denso, de um menu que soube ser leve e delicado ao longo de todas as etapas. Mais uma marca de Outono, onde o feijão contrapunha a cevada mais pesada noutro momento reconfortante.

Cevada, Avelã, feijão verde e pó de fermento

No copo permanecemos num ótimo nível com outro orange wine, desta feita um Jakot Klinec 2012, com notáveis notas minerais e elegância, que se mantiveram com o avançar da idade.

Truta, manteiga queimada e raíz forte

Na fase de dar destaque à proteína, surge à mesa uma Truta do rio Soca, maturada por dois dias e grelhada ao estilo japonês. Servida com uma espécie de beurre blanc ou hollandaise de manteiga queimada e caldo de peixe, com o contraponto da raíz forte ralada e do pickle de daikon. O prato da noite sem dúvida! Ponto de cocção perfeito, equilíbrio na conjugação de ingredientes, e a raíz forte com o seu leve picante a realçar e equilibrar todas as notas. Excelente!

Acompanhou com um Robinia Stemberger 2015 um blend de Ribolla, Welschriesling e Malvasia de Istria, com notas de fruta branca madura, amêndoa e alguma baunilha com ótima frescura.

Corço, ostra, kiwi, beterraba e verduras da montanha
Corço, ostra, kiwi, beterraba e verduras da montanha

Se Ana tem alguns ingredientes de eleição, como a ricotta fermentada ou a truta, o corço é o último elemento desse trio, numa homenagem à vida selvagem de Kobarid e ao seu pai, caçador de toda a vida. Neste prato, Ana mostra-nos outra das suas habilidades – a combinação inusitada de ingredientes , em particular as conjugações terra/mar – aqui brilhantemente conseguida (diga-se que contra todas as expectativas), de corço com kiwi, emulsão de ostra, jus de caça e beterraba.  

Dosa, cabrito, iogurte salgado, agrião selvagem e folhas de caril
Dosa, cabrito, iogurte salgado, agrião selvagem e folhas de caril

Tendo estudado relações internacionais, viajado o mundo para conhecer restaurantes e agora para partilhar a sua cozinha, Ana tem uma particular paixão por incorporar esse mundo que vai descobrindo na sua cozinha, sem nunca perder o sentido de identidade local. Um bom exemplo disso é esta Dosa (panqueca de lentilhas), recheada com cabrito e sabores de influência indiana. Um momento delicioso, que nos convidou a perder a compostura à mesa.

Pasta Ana

Para fechar a parte salgada do menu, uma interpretação do prato mais clássico de Ana Roš, primeiro cozinhado pela sua mãe com o molho de tomate do seu pai, e que aí ganhou o nome de Pasta Ana. Uma combinação de pasta, tomate e queijo, que traz mais uma vez a comida de conforto ao menu, mas com uma roupagem e uma técnica de elevado apuro.  Um Agnoletti com dois recheios, um com a ricotta fermentada, outro de um secreto preparado de tomate, feito a partir da receita original do pai de Ana, e um molho de tomate… E que molho! Uma espécie de beurre blanc feito com àgua de tomate, mas repleto de sabor.

A harmonização fez-se com um Kamnarjevo Kraški Trn 2016, um tinto biodinânico produzido segundo a certificação Demeter, que mais uma vez revelou uma ótima combinação com o prato.

Granizado de folha de figueira
Granizado de folha de figueira

Passando aos doces, que na realidade tendem a não ser uma explosão de sabores e de ingredientes tradicionalmente encontrados nas sobremesas, mas mais uma continuação do menu, incluindo até algumas notas salgadas. Começamos com o sabor e frescura de um granizado de folha de figueira para limpar o palato, ao que se segue o Mel e as abelhas, como um dos produtos mais reconhecidos da Eslovénia e que aqui é particularmente bem tratado. Um momento levemente indulgente, mas refinado e contido como todo o menu.

I Love bees - Brioche de mel, cera de abelha, pera e camomila
I Love bees – Brioche de mel, cera de abelha, pera e camomila

Para acompanhar, além da infusão de camomila de leves notas salgadas, o vinho da noite, um Gravner Ribolla 2015, servido a preceito num copo desenhado para o efeito. Gravner é um dos meus produtores do coração – será sempre difícil esquecer a primeira vez que o provei. Um Produtor que vive a vinha e o vinho como o Hiša Franko vive a cozinha. 

Gelado de Frutos silvestres, queijo Zemljanka e Malte
Gelado de Frutos silvestres, queijo Zemljanka e Malte

Sem as sobremesas de grande composição e apuro técnico e estético, que comummente encontramos no fine dining, é nos gelados que Ana mais destaca. E bem, a julgar pelos que podemos provar, poderá abrir uma gelataria no seguimento do sucesso da sua padaria. Uma combinação de contrastes, mais uma vez com as notas salgadas, que resultou lindamente.

Houve ainda tempo de um delicado e bem preparado cocktail à base de Gin, mirtilo e manjericão canela.

Finalizamos com Meloa comprimida com folha de shiso para intensificar o sabor, e uns caramelos de trigo sarraceno e cottage para levar connosco para casa.

Uma longa viagem antes do chá final

Antes das considerações finais há várias notas a tecer. Primeiro sobre o serviço: do primeiro ao último minuto desde a chegada a Kobarid, a jovem equipa faz-nos sentir não num três estrelas, mas numa casa de amigos, onde somos recebidos com um sorriso, abraçados pela simpatia e generosidade de quem está a fazer o que faz com paixão e dedicação. Isto sem nunca descurar o apuro técnico que se exige a este nível – Um exemplo que vários deviam seguir e que por si só vale a visita ao restaurante.

A cozinha

Em seguida uma nota para os pairings: mais uma vez aqui o Hiša Franko rompe com o estipulado e arrasa com uma proposta pouco comum, de harmonizar o menu apenas com vinhos naturais produzidos na Eslovénia ou na fronteira italiana. Um mergulho na descoberta de novos vinhos e produtores que casaram lindamente com os pratos, demonstrando atenção e apuro nas escolhas.

Ainda sobre a harmonização, devo destacar o trabalho de Anjica Skrbinek, diretora de bebidas, e Davide Rovagnati, este último além de brilhante a conduzir a nossa refeição também se dedica aos “sumos” para a harmonização sem álcool. Sem dúvida uma das melhores que pude provar, das combinações inesperadas como as diferentes kombuchas, a água de tomate com pêssego, a beterraba com arônia ou o trigo sarraceno com estragão. Muito mais do que sumos, extrações ou leves infusões que muitas vezes encontramos.

O Dia seguinte
Parte da experiência do Hiša Franko é dormir no local e acordar para desfrutar das vistas magníficas e do pequeno almoço no restaurante. Não esperem quartos luxuosos nem excessos, por aqui não há investidores milionários nem cadeias internacionais, o verdadeiro luxo está mais uma vez à mesa! O mel, os queijos, as granolas, as cookies que apetece trazer para casa numa mala cheia, o pão, a seleção de chás e infusões, os ovos cozinhados a preceito, os enchidos e o serviço, sempre o serviço!

Ser recebido pela manhã por Matjaž, é sem dúvida, parte do sucesso e algo que nos faz sonhar em voltar. Porque não podem todas as manhãs ser assim?

Considerações Finais
Ouvi histórias e relatos, li louvores e contradições, dizendo que seria um produto de marketing. Obviamente criei as minhas próprias expectativas, mais ainda quando viajamos por cerca de duas horas pelas montanhas, vales e a encosta do rio Soca até chegar à localização remota do Hiša Franko. Se dúvidas houvesse, foram dissipadas ao longo da refeição, do storytelling que é muito mais que entretenimento, à combinação quase alquimista de ingredientes, do serviço que nos envolve na experiência, ao fio condutor do menu elegante, internacional na disposição e apresentação, mais uma interpretação pessoal e genuína da Eslovénia mais pura e rural!

Há uma aura de magia à volta do Hiša Franko e da cozinha de Ana Roš, díficil de explicar por palavras. É o restaurante certo, no local certo e, sobretudo, com as pessoas certas. Essa é a verdadeira magia.

Enquanto lêem este texto, já não será possível provar o menu “50 Shades of Life – It’s a celebration time” que serviu de celebração dos 50 anos do restaurante, os 50 de Ana, um novo amor e um casamento que culminou, sem saber, com a conquista da olímpica  terceira estrela. Por esta altura servir-se-á o menu 50 Shades of Red, uma continuação da celebração em que a paixão, a arte e o encarnado, que tanto marca o restaurante, se destacam.

Quanto às chaves, “trouxe-as comigo”, juntamente com o desejo de voltar. Obrigado Ana, Manca, Anjica, Tilen, Yvonne, Davide, Matjaž e toda a equipa por criarem muito mais do que uma cozinha excepcional.

 

Preços a partir de 325€ (sem vinhos)
Staro selo 1, 5222 Kobarid – Eslovénia

Fotos: Flavors & Senses
Textos: João Oliveira
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