Essencial

Essencial é nome e aparentemente conceito deste pequeno restaurante no nº 176 da Rua da Rosa no Bairro Alto. De decoração minimalista, ou se quisermos manter o chavão, reduzida ao essencial – onde as madeiras claras e os tons neutros dão um toque nórdico.

Mas façamos um pequeno briefing antes de nos sentarmos à mesa: André Lança Cordeiro é o artesão deste projecto, um cozinheiro que passou por França antes de se instalar num palácio em Lisboa e de dar a conhecer o seu nome num pequeno projecto denominado “Local”. Aqui, por conta própria, André decidiu reduzir a sua cozinha ao adjetivo que dá nome ao restaurante – boa cozinha e bons produtos.

Uma redução que não é feita de minimalismo ou modernismo mas sim por trazer para Lisboa o melhor da cozinha francesa, apostando no produto, com técnica e sabor apurado. Uma cozinha à qual muitos declararam sentença de morte, mas que aos poucos vai ganhando apoio e reconhecimento por parte de quem valoriza o trabalho artesanal de cada prato.

Pão de massa mãe, manteiga e gordura de porco batida com alecrim

Neste teatro francês aberto aos comensais estão ao lado de André, e entre outros, Leonor Sobrinho (também conhecida por ser o seu braço direito e esquerdo) e Daniel Silva, que de apaixonado gastrónomo passou a chef de sala e sommelier.

Mas, passemos à mesa onde somos recebidos com pão bem quente, manteiga e uma menos provável gordura de porco batida com alecrim, tudo muito bem escoado com um Briords Vieilles Vignes Sur Lies 2020 de Muscadet, que demonstra que a carta de vinhos é tudo menos comercial ou aborrecida.

Ouriço do Mar, lima caviar e tártaro de carabineiro
Para começar a degustação um mergulho no mar, podia ser uma homenagem ao ouriço de Rafa Zafra no Estimar, mas a escolha de carabineiro, a acidez da lima caviar e o molho irrepreensível leva o prato para outro patamar e, claro, com um sotaque bem mais francês. Por mim podiam ter vindo 4 ou 5.

Foie gras, marmelo e brioche folhado
Falar em cozinha francesa não seria possível sem falar em foie gras, aqui servido num delicado e bem conseguido torchon mi cuit, que é como quem diz, que o dito fígado foi marinado e cozido levemente até atingir um ponto que o torna perfeito para barrar. Ao seu lado, marmelos bem trabalhados (não servem só para marmelada, como infelizmente é apanágio da nossa cozinha mais tradicional) e um brioche folhado que apesar do bom sabor, requer ainda mais apuro técnico.

Pâté en croûte de pato e laranja, foie gras, pistácio, cenoura e pera
Pâté en croûte é sinónimo do savoir vivre francês, raro de encontrar em Portugal, e mais, ainda bem feito! Tem sido ao longo dos últimos anos um dos grandes focos do trabalho de André Lança Cordeiro e um dos pratos que lhe deu fama durante a pandemia em regime de take away. Recheio exímio, repleto de sabor, frescura e doçura q.b., bem acompanhado pelo puré de cenoura, o confit de pera e os pickles. A gosto pessoal apenas as laterais da massa mereciam um pouco mais de cozedura para um melhor contraste entre massa e recheio.

No copo, estes dois ícones da cozinha fizeram-se acompanhar pelo Domaine de Bellivière Vieilles Eparses de Eric Nicolas no Loir. Um 100% Chenin cuja mineralidade e as notas cítricas conjugadas com algum mel fizeram uma boa harmonização com os pratos.

Linguado, agrião, aipo, trufa, topinambour assado e molho de champagne e ovas de arenque
Continuamos numa cozinha clássica mas tão atual como qualquer outra, com a excepção de dar um pouco mais de trabalho do que por o peixe no sous vide à temperatura certa! Peixe no ponto, com todos os elementos a casarem lindamente na boca, com notas de frescura e terra a ligarem muito bem com a salinidade do molho. Houvesse caviar e podíamos estar em qualquer dos estrelados de Paris (o preço é que seria outro…).

Como não há cozinha francesa sem champagne bebeu-se Domaine Piollot Come das Tallants, um brut nature 100% pinot noir, que tendo servido bem o seu propósito seria ainda melhor no final com um prato de queijos, dado o seu aroma e robustez.

 Pithivier de Lombo, foie gras, puré de aipo caramelizado e alho negro, mille-feuille de batata crocante
Outro dos selos da cozinha de André Lança Cordeiro tem sido o seu trabalho com a massa folhada salgada, inspirado por mestres como Bruno Verjus, Yohan Lastre ou Karen Torosyan, muitas têm sido as suas propostas e recheios. Aqui, provou-se um complexo bife do lombo com farce, foie, legumes, couve, tudo cozinhado no ponto com máxima precisão – deve ser um alívio tremendo o momento de colocar a faca na massa e perceber que tudo bateu certo. A acompanhar o pithivier tudo ao mais alto nível, do jus ao puré e, claro, a abençoada trufa negra que o André aprecia tanto quanto eu.

A harmonizar esteve um menos irreverente Quinta do Monte d’oiro Reserva 2013, um syrah com apontamento de viognier, repleto de fruta madura mas sem ser chata com as notas de pimenta da darem-lhe alguma graça. Na boca denotava taninos polidos e a madeira muito bem integrada. Não era algo que esperava encontrar depois dos restantes vinhos, mas não comprometeu!

Soufllé de Avelã e trufa
Quem acompanha o trabalho do André nas redes sociais muito provavelmente chegou até ele pelas fotos pecaminosas de pastelaria francesa que vai ensaiando. Soufllé é sempre um exercício complexo ao qual a maioria dos pasteleiros foge, mas em boa hora o André não o fez – delicado, rico e saboroso e elevado ao último nível de epicurismo com a trufa fresca raspada no momento. O meu Inverno podia ser cheio disto…

Mille-feuille de baunilha, caramelo salgado
Considerado por todos que o provam como o melhor de Lisboa, desde que o vi online pela primeira vez que despertou em mim uma grande curiosidade, primeiro por ter efetivamente um aspecto de rara perfeição e segundo porque me lembrava um dos melhores mille-feuille que já tive oportunidade de provar, o do Relais Louis XII do chef Manuel Martinez à época com duas estrelas Michelin em Paris, qual o espanto quando um dia percebo numa entrevista que o André passou pela pastelaria do restaurante durante a sua passagem pela capital parisiense. Quanto à sobremesa não há muitos adjectivos a acrescentar, todos a deviam provar.

Para terminar uma já longa refeição e acompanhar em boa forma os doces, a escolha do Daniel Silva foi para um dos meus produtores favoritos de Jerez, um Cream Tradicion 20 anos da Bodegas Tradicion. Este vinho é o resultado da combinação de Pedro Ximénez com incrível Oloroso de Palomino Fino, que se torna num vinho muito particular do qual é difícil não gostar.

Sobre o serviço não há nada a dizer, é como estar em casa dos cozinheiros com um amigo que percebe de vinhos a servir-nos o copo. Mais uma vez o essencial, portanto!

Considerações Finais
De look nórdico e matriz francesa, o essencial é uma lufada de ar fresco – pode parecer estranho eu sei! Como é que um restaurante de cozinha clássica francesa pode ser algo refrescante e inovativo, perguntam vocês? Mas a resposta é simples, perguntem-se quantos de vocês, numa era de inovações, minimalismos e criações, muitas das vezes completamente desenquadradas, já tinham provado um pithivier na sua melhor expressão? um pâté en croûte? uma poulard en vessie, ou até mesmo um paris-brest?

Pegar em clássicos que moldaram a história da cozinha, reduzi-los ao foco do sabor e maneja-los com um rigor técnico invejável é algo difícil de encontrar e apenas acessível a quem está disposto a sofrer muitas horas na cozinha, isso e a quem se pode dar ao luxo (fica sempre a dúvida se será luxo ou ego controlado) de falhar, falhar outra vez, e repetir. Numa era moldada por influências estéticas e de empratamentos, André Lança Cordeiro deixou-se influenciar pela complexidade e a forma de fazer e isso é o que torna a sua cozinha tão refrescante. Se a cozinha também tem erros? tem! Mas a perseverança que se vive nesta cozinha indica-nos que são erros passageiros de quem vive mais como artesão do que como chef. Em resumo, tudo aqui se resume ao essencial – boa comida, e essa é a única opção do menu!

Preços a partir de 50€ – (sem vinhos)
Rua da Rosa – 176, 1200-390 Lisboa
+351 211 573 713

Fotos: Flavors & Senses
Textos: João Oliveira
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